
Marcos Wilmer
escritos
Tanto em meu trabalho como terapeuta quanto como escritor dedico meu principal interesse às possibilidades evolutivas do ser humano.

Intenção
A seguir está uma coleção de meus escritos. Pretendo publicar pelo menos um capítulo a cada três dias, sem, no entanto, seguir a ordem cronológica na qual os livros foram escritos. Cada trabalho é único em forma e conteúdo, e representa um momento distinto no meu caminho. Espero que você aprecie e que se sinta à vontade para entrar em contato caso tenha qualquer comentário ou sugestão.

“Não há muito que preparar para uma viagem dessas. É entrouxar algumas roupas fuleiras (Não que todas as suas não o fossem, o que quero dizer é que preferiu escolher as mais fuleiras delas.) numa mochila fajuta, que era a única que tinha, memorizar as indicações, pois não era otário de levar o mapa, pegar um ônibus que o pudesse levar o mais próximo da subida do morro. Está em busca de um quarto para alugar. Sua treinada atenção nessa hora é de extrema valia, ele conta os pontinhos do mapa – que agora são os barracos da favela, em latitude e longitude. Quase que tateando as ladeiras íngremes e estreitas, em certa esquina depara-se com um muro de alvenaria – era das poucas coisas que se via ali feitas de tijolos, cimento e tinta –, razoavelmente rebocada e pintada no capricho em azul e vermelho: uma propaganda das Casas Bahia! Grudado a essa parede vivia um casebre com um cômodo incômodo para alugar. Não penses que havia qualquer plaquinha, alguma indicação, nada. Foi tudo descoberto através da tal boca pequena, ele foi conversando, indagando, enquanto internamente as suas indagações se multiplicavam. Mas quem tem tempo para isso agora?”
A vida real escrita em minúsculas e vivida em maiúsculas...
Dedicado ao meu irmão Celso, grande incentivador

Mundo comum: O mundo normal do homem antes de a história começar.

O caminho da aventura: Um problema se apresenta ao herói, um desafio.
Acho que, por um tempo, ele lamentou ter encontrado esse embrulho. Pois, daí em diante, a sua vida se tornou incontrolável. Ele, que tinha sua contabilidade tão certa, passaria a viver imensas surpresas, até a se comprometer com o imponderável, quando tudo o que mais sabia era ponderar, medir, calcular, e decidir com base e segurança, a partir de dados perfeitamente confiáveis e aferíveis. De um momento para outro, as suas decisões deixaram de ser escolhas; suas escolhas deixaram de ser tão decisivas; suas análises de nada lhe valiam – estava arrebatado! E o que significa isso?
O pacotinho poderia ser qualquer porcaria, afinal estava no lixo! Porém, para desespero de alguém tão apoiado em costumes, aquilo foi uma descoberta única. Era um mapa. Sendo mais específico, o raio do cão inventou de farejar naquele monte de lixo. Era evidente que aquilo não lhe agradava (ao dono, óbvio). Ainda por cima o danado do cão ficou entretido por tanto tempo ali que ele acabou por olhar. Era só um monte de lixo! Aparentemente nada mais que isso. Fedido, como costumam ser esses montes. ‘Ai, que saco! que fedor! Sabe o quê? Vou acender um incenso quando chegar em casa.’
Entretanto, eis que ele acaba por reparar numa espécie de envelope, ou pacotinho, embrulho, afinal que merda era aquela coisa (bem limpa, com um impecável laço de fita violeta), ao lado daquele monte fedorento? ‘Será que eu meto minha mão lá? Merda, para que isso?! O que de tão interessante pode haver num monte de lixo, além de mau cheiro?’ A porra daquele treco estava ali, involucrado mui cuidadosamente, em um celofane cor-de-rosa escuro, um tom raro, muito estranho, que parecia ter reflexos meio azulados...
Depois de todo aquele tempo de voltinhas, as cheiradas, mijadinhas aqui e acolá, e uma cagada básica (do cão, bem entendido), nosso amigo acabou por não resistir ao brilho, e pegou o tal embrulhinho, pacotinho ou como queiramos chamar, porque ele mesmo já não definia – estava num estado meio parvo. Assim pegou a coisa e, incontinenti, a enfiou no bolso do paletó.
Em seguida, ocorreu que começaram a se aproximar os cães vadios da vizinhança, o que não era nada legal para o seu, que, como seu dono, não se sentia, em absoluto, preparado para grandes confrontações. ‘Melhor a gente se arrancar e é já!’
Aquele paletó ficou pendurado, cuidadosamente, lá no guarda-roupa, por longo tempo, seu conteúdo esquecido. Enquanto isso, o nosso herói continuava se dedicando com afinco ao emprego e em manter sua casa em ordem – adequada e digna.
Se há uma coisa que eu nunca entendi muito bem é o seguinte. Como é que essa história extraordinária veio a acontecer justamente com um sujeito tão rotineiro, tão não especial. Poder-se-ia supor que para que algo especial acontecesse deveria haver um campo especial, uma gente, uma pessoa com certo brilho para casar com aquilo. Mas não foi este o caso. O gajo era bastante opaco, brilho não se poderia dizer que tinha, ainda que... É bem verdade que, quando recolhido ao seu canto (Novamente, que possa ser entendido o canto como tu queiras.), àquele clima que conseguia criar, ou se deixar levar, quando tascava umas cantatas no seu aparelhinho de som, e se embevecia. Ou quando pegava um livro daqueles que nos transportam do mundinho mediano a uma viagem, daqueles que podem igualmente nos levar ao sétimo céu e aos cafarnauns das nossas percepções mais cruas, mais rés-do-chão, egoístas – se é que alguém percebe a diferença entre umas coisas e outras assim tão fácil! Sei que, por um lado, era um tipo totalmente mediano, comum. Mas, afinal, será que existe de fato alguém comum? Ou alguém incomum? Ou serão as circunstâncias que podem ser assim ou assado? Estas perguntas difíceis o faziam desejar que logo segunda-feira chegasse. Pois assim ele podia retornar à sua rotina segura. Ainda bem que existiam as etiquetas, rótulos e carimbos! O mundo continuaria a ser o mundo, a vida continuaria a ser a mesma vida etc... (Pobre coitado, ainda não havia se dado conta de que ninguém jamais sabe o que a vida – a Inusitada Completa – pode nos trazer de necessidade de transformação, de transgressão, de escancaro.)
‘Raios! Abalos existenciais são tudo que não preciso! Para mim, me bastam os sublimes Bach, Hesse etc.’ (Como se fosse possível contata-los impunimente!) Mas, sigamos. O sujeito vive uma vida embaçada e isso é compensado por sua paixão pela arte. Podemos pensar: Para que, diabos, esse carinha decide que tem que ter paixão? Não! Ele não decidiu nada! Ele apenas foi seguindo seu gosto abstrato – ainda bem vago. Quase se poderia dizer que a sua alma foi atropelada pela linguagem transcendente da arte. Porém ele não sabia de nada disso então, pois assim mesmo acontece quando se tem contato com a arte, ela te corrompe subliminarmente, ela se infiltra, clandestina, na tua alma. E pouco a pouco, tu passarás a viver inspirações inesperadas, atrações insuspeitadas. Que merda, afinal, foi que o atraiu para aquele embrulho de brilho quase cafona de celofane?! Talvez caso ele antes já tivesse abraçado alguma religião poderia obter alguma boa explicação. Mas não, o infeliz ainda por cima estava completamente só também nesse sentido, ele já havia desistido das respostas edificantes... e fedorentas. Digamos assim: Ele tinha o azar de possuir alguma inteligência. Talvez essa seja a pior situação para um ser humano: a meia inteligência. E talvez este seja o nosso purgatório: a consciência parcial. Porque com pouca consciência se pode até viver contente. Imagino que com consciência plena também. (Eu só posso imaginar.) Porém o meio do caminho, os áridos vales de ignorância, feiura, grosseria e frio que se tem que suportar... A pessoa pode já ter noção da sua própria ignorância, contudo ainda está longe de ter a visão clara da sabedoria – está parada no meio, entre o Buda e o macaco.
Ih, já fomos longe demais. Esse nosso homem ainda não está preparado para tais percepções. No momento, está tratando de assegurar-se uma vida tranquila e segura, em que ele possa ter seu mínimo conforto e dignidade. E, por suposto, os subsídios para sua espartana biblioteca, seus discos e, naturalmente, suas investidas na noite.
Assim, o dito embrulho ainda vai ficar no bolso interno do paletó por algum tempo. Por mais que o tenha usado em outras ocasiões – poucas, é verdade –, não foi capaz de perceber o magnetismo. Não lembrou nem tateou.
Não que fosse um tipo totalmente tosco. Ao contrário! Aquela sua meticulosidade era só um pequeno reflexo da sua atenção sutil, perspicaz. É verdade que, no ponto em que nós estamos, sua atenção ainda está demasiadamente aprisionada aos ditames comportamentais, aos padrões – que ele ainda não consegue ver como apenas um modo.
Eu imagino que tenha sido por aí que a arte foi entrando – minando estruturas rígidas e materiais. Sorrateiramente, esse contato foi fomentando nele uma espécie de gosto por elevar-se, por voar. Ainda seus melhores voos eram esses mesmos que sabemos: os livros, os discos, a putaria (não necessariamente nesta ordem). E, vou te dizer, para ele estava de bom tamanho! Imagina só, o sujeito nasce numa família de camponeses, e tem a oportunidade de estudar na cidade. Vai bastante bem em tudo isso, e logo consegue um emprego onde acredita que possa crescer. (Crescer, no caso, significando ganhar mais dinheiro.) E cresce, a ponto de poder alugar seu próprio apartamento, arcar com as suas despesas, e ainda enviar algum reforço para os seus pais. Ele se sente contente, poxa! Entretanto, não é exatamente isso que se vê quando se olha para ele. É que, ainda que tenha feito tantas conquistas, parece um pouco apático, não vibra, tem pouco calor. Quer dizer, não vibra vírgula, vibra sim com a música – vai ao sétimo céu com Apolo & Dafne, de Händel, se compadece às lágrimas, mergulhado na leitura de Debaixo das Rodas, se constringe e enche de força com O Jogo das Contas de Vidro (isso só para citar sua fase Hesse.). Ou seja, o gajo não é qualquer. Mas então voltamos à estaca zero! Afinal, existe alguém qualquer?
‘Que saco! Vamos parar com as considerações filosóficas, e voltar aqui para a realidade? Hoje é o dia de preparar o relatório final de todas as conferências e as inspeções do mês, casando os dados com a receita. Não vejo a hora de me livrar disso e correr para casa! Hoje mereço tomar um traguinho ou dois ou mais.’
Porém já estava fadado... O primeiro rasgo lhe sobreveio numa terça-feira lá qualquer, quando, de repente, sentiu no primeiro movimento da sétima de Beethoven aquilo que parecia impor a supremacia da inteligência sobre a natureza material. Entretanto, isso serviu somente para lhe confundir. Poxa, pensava que tinha tudo organizado! Ele deveria ter desligado o som ali, naquele mesmo instante. Mas não, o cara esperou que o segundo movimento lhe trouxesse algum conforto, o que parecia que ia acontecer, pelos primeiros acordes. Contudo, aquilo foi lhe levando, por ondas e outras ondas, a estados que ele não ousava reconhecer. ‘Ah, não! Não venha a vida querendo que eu transborde!’ Felizmente, o terceiro movimento trouxe-lhe um monte de entusiasmo. Que alívio! Novamente, poderia (e deveria) ter parado por aí. Inadvertidamente, seguiu. E deu azar, porque o quarto e último, traz uma exuberância tão absurdamente magnífica, que já ninguém pode saber como acompanhar. Já nada se encaixa, ou tudo se encaixa demais. Aquilo vai de mais para mais ainda! Vai da mais abjeta necessidade à opulência descarada. Ou tu te deixas transportar... Melhor dizendo, ou te aniquilas ou aquilo te aniquila. ‘Vou dormir que é o melhor que faço.’
Uma das coisas mais difíceis de definir é o que é um chato, embora todo mundo saiba o que é. (Claro que não estou falando do piolhinho que deu origem ao termo.) Este de que estou falando era uma pessoa medíocre, sem cor nem entusiasmo. Não que fosse um total infeliz, parece que todo mundo dá um jeito de dar algum sentido à sua vida. Ele aguardava ansiosamente os sábados, depois de toda uma longa semana de trabalho muito atento no setor de conferência, onde era apreciado por sua meticulosidade. Aferir que todas aquelas etiquetas e os rótulos estivessem devidamente afixados, que todas as vias tivessem sido reconhecidas por carimbos e assinaturas, e todos os demais procedimentos, tudo isso exigia um alto esforço de concentração, e ele estava feliz com o reconhecimento que recebia por esta sua capacidade. Na verdade, sem que ele mesmo soubesse, estava desenvolvendo a atenção. E essa capacidade (de ater-se) vai fazer muita diferença ao longo desta história. Afinal, estar atento é estar vivo, presente. E a vida não é, em absoluto, realizada pelos desatentos. Estes apenas a sofrem.
Ele, estoicamente, resistia àquela sua rotina, buscando dar algum sentido e valor àquilo. E, ademais, não podemos nos esquecer de que ele já havia sido tocado pela arte, seu mais puro oxigênio. Era capaz de passar todo um fim-de-semana ouvindo a mesma cantata ou sinfonia, concerto, réquiem, o que fosse a inspiração do dia, semana ou até longo período repetindo e repetindo, se alimentando. Ou era capaz de ficar no mais absoluto silêncio, absorto num livro que o transportasse. Se não isso, eram então seus dias ocupados por suas tarefas profissionais, por seus cuidados caseiros, seu cachorro, sua higiene pessoal (dele e do cachorro, claro) e aquela sua parca alimentação (só dele, pois a do cachorro era farta, ele mesmo não fazia questão).
Já aos sábados, se permitia ser totalmente disperso, o seu cachorro nunca sabia o que esperar dele. Se durante a semana era tudo tão certinho, sua ração e sua água postas invariavelmente na mesma hora, seu cotidiano pequeno passeio noturno para as necessidades, o comportamento sempre igual do dono.., aos sábados tudo era diferente, inesperado, incongruente. O cachorro adorava! Às vezes podiam ficar o dia todo trancafiados em casa, no deleite da música ou na leitura desenfreada (não do cão, é claro, que não desfrutava deste calor imaginativo. Quem sabe de qual outro?). Em outras, saíam para perambulações quase intermináveis e, aparentemente, a esmo, quer por aquele parque maravilhoso e cheio de tocas e mistérios, quer por ruidosas avenidas ou por misteriosas ruas, por caminhos ou becos, pelos botequins ou bordéis. Então tudo podia acontecer; desde que, na segunda-feira, toda normalidade estivesse restabelecida. (E a alma oxigenada o suficiente...) Ufa!
Apesar de não praticar qualquer tipo de atividade física (a não ser que consideremos aquelas suas perambulações de fins-de-semana), mantinha bastante bem a forma. É que era um sujeito franzino, um corpo pequeno, sequinho, enxuto. Não sei dizer até que ponto esse porte interferiu na sua personalidade, não sei a quantas mulheres agrada o tipo miúdo, podem não ser muitas. E também não sei o quanto, ao longo dos anos e das comparações sociais, ele possa ter ficado impregnado de diminuição.
Talvez por isso, os seus momentos de solidão fossem tão valiosos. Pois era assim que ele conseguia reconhecer a si mesmo, independente dos padrões, para os quais, aliás, não servia muito. Não que isso fosse assim tão lúcido e consciente para ele, longe disso, era algo tão vital como respirar, e talvez por isso mesmo, nunca pensado. Não se pergunta qual é a função, ela é óbvia, mesmo que não dita. Assim alimentado, ele podia prosseguir em sua rotina, sem tornar aquilo num inferno. Não! Havia ali um equilíbrio claro ou, pelo menos, aparente. Não se viam sinais de nenhuma disfunção patológica. Ele até parecia administrar muito bem a sua vida. Não exultava nem lastimava. Não soa como uma coisa muito estimulante (sei disso), porém, se consideramos as circunstâncias, vemos uma conquista inestimável. Mesmo que não seja totalmente consciente para ele, ainda assim há um toque.
No mais, era uma vida como a de todos os seus vizinhos: assistir programas de televisão, saber das notícias que os telejornais selecionavam (às vezes se dando conta disso), fazer suas compras no mercado, pagar contas na lotérica, limpar o lugar, lavar a louça e a roupa – ambas poucas –, preservar um canto para a sua existência. (Entenda um canto como quiseres – de lugar ou de melodia...).
É muito curiosa essa situação em que o ser humano está metido. Por um lado, como mamífero, necessita abrigo e pertencimento. Por outro, como ser, necessita o absurdo, o inusitado, o desvelar de uma face do Mistério. Mas quem sou eu para estar falando aqui do Mistério, quando nosso amigo sequer chegou a esse ponto de reflexão. Ele está muito próximo, ou muito distante ainda. Tudo isso vai depender apenas das suas escolhas. Porém, que nível de consciência nós podemos esperar dele? É quase de dar dó! O sujeito nasce em condições bastante difíceis, luta muito para superar aquela penosa situação, mesmo sem saber exatamente o que tudo envolve essa dita condição, mas segue movido pelo incômodo da limitação. Bom impulso e pouco conhecimento. Acho que conheço esse enredo. Daqui pode resultar um tremendo avanço ou um baita retrocesso. Não há garantias.
Ele, por esse tempo, havia descoberto uma nova sopa desidratada que, bastava acrescentar água fervente e, em poucos minutos, estava pronta. Era, nas noites em casa, o sustento mínimo para qualquer dos seus devaneios. Ou não consideras que, de alguma forma, eram os devaneios que davam sobrevivência a esse sujeito?
Era do tipo que não possuía nada. E quase não reparava nisso. Talvez estivesse tentando evitar o incômodo de ter tal conhecimento, não sei. Preferia se apoiar nas coisas de que sim tinha conhecimento. Se compartilhar a vida com alguém seria melhor, isso ele não sabia, e estava longe de tentar qualquer constatação direta, pois que todas as suas experiências com moças do tipo decente não tinham resultado em nada mais que estupefação. Afinal, quais eram seus anseios? Ele não podia entender. Nessas horas sentia certa melancolia, lembrando o modo simples com que as coisas eram resolvidas no campo. Contudo, ele estava no meio-caminho, ainda não estava no seu tempo e lugar, e já não estava naquele dos seus pais. Não pertencia a um mundo nem ao outro. Menos mal que ele jamais se colocava essas questões! Muito simplesmente tratava de cumprir com suas obrigações, e buscava algum sentido, ou consolo, no contato com as obras daqueles que ousaram ultrapassar o comum, e que, através da sua arte, tentaram insuflar inspiração no peito dos reles mortais, aqueles que, sendo eles mesmos mortais, de alguma forma conseguem inflamar mesmo as almas mais aprisionadas.
Saber que havia outro mercado com preços mais baixos não era motivo de agrado, preferia não ter que mexer nos seus hábitos. E, além do mais, essas diferenças, apesar dos seus parcos recursos, lhe pareciam irrisórias. Começava a honrar bastante bem o seu tempo, sem nem refletir sobre isso. Ora, já eram tantas horas comprometidas com seu emprego, tanto que se gasta para manter uma casa em ordem, que não seriam alguns centavos em um ou outro produto que lhe fariam dedicar seu tempo a essa pesquisa. No tempo que tinha para si mesmo, ele precisava se salvar, necessitava mais alimento, do tipo que não é vendido no mercado. Mas pensas que isso era tão claro para ele? Não! Parecia, simplesmente, responder a algum tipo de instinto, sem saber lhe dar nome.
Foi num daqueles cinzas dias invernosos que lhe chamou a atenção o Agnus Dei: Agnus Dei da Missa em si menor de Bach. Para ser sincero, foi mais do que lhe chamar a atenção. Ele se grudou e foi transportado – ele aceitou a entrega. (Podes entender nos dois sentidos: a entrega que recebia delivery diretamente de Bach e a que dependia dele.) Passava noites repetindo o movimento, às vezes enquanto lia alguma coisa, às vezes apenas colado na sua poltrona, incapaz de ser capaz ou capaz de ser incapaz. Quem pode julgar o que é melhor?
Há algo de extremamente misericordioso na ignorância. Enquanto a gente não estiver apto a enxergar a realidade, melhor que a vida nos inspire com apenas lampejos (pois que também sem eles...). Mesmo que os lampejos possam às vezes ser o suprassumo da doce tortura, ‘oh Deus, me deixai na ignorância total, ou mostrai-me o caminho da luz, seja isso o diabo que for!’
Desculpa o devaneio, pois, por mais que nosso homem esteja sendo alimentado (quase sem saber), ainda não está num ponto de anseio assim tão grande, pelo menos não conscientemente. Naquilo que diz respeito à sua intuição, por mais que devamos reconhecer que ao longo de seu caminho ela lhe tenha guiado – de uma forma que ele não compreendia –, não se poderia dizer que estava aberto o suficiente para atender a um chamamento. Sequer sabia da existência de tal coisa. Era nada mais que um funcionário dedicado a cumprir com suas obrigações. Caramba! Afinal a vida já lhe havia sorrido bastante ao permitir-lhe ir além das fronteiras do seu vilarejo natal. E, cá para nós, o sujeito já trazer em si, sem nem saber por que, esse gosto pela música, pelas letras e pelas formas, quem poderia explicar isso? Menos mal que, pelo menos até então, conjecturas como essa ainda não lhe tiravam o sono.
Até que.., afortunadamente.., aconteceu um infortúnio, o inusitado. Não sei dizer por que raios, naquela quinta-feira à noite – um dia de semana qualquer, afinal! – o maldito cachorro inventou de fuçar num monte de lixo qualquer ali no bairro. Depois se viu que de qualquer não tinha nada, nem o dia nem o monte. O danado do cão farejava, o seu dono impaciente, até que este último reparou naquilo que tão insistentemente o cachorro farejava, um pacote...

Reticência do herói ou recusa ao chamado: O herói se recusa ou demora a aceitar, tem medo.
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Ah, pensa que dormir é tão simples assim! Daqui para frente, ele terá imensas saudades das suas noites de sono sossegado. Não, caro amigo, acabaram-se os tempos de paz, tu foste mordido pelo camelo.
A Mordida do Camelo
Era uma vez, a menos de mil milhas daqui, um menino que, para sua pouca idade, eu acreditava, tinha uma grande experiência no cuidado com suas ovelhas. Suas pernas eram delgadas, mas fortes; os pés, que levava sem calçar, estavam endurecidos, sem dúvida alguma pelo trabalho; e em seu olhar havia mais luz que a do ouro refletido nas areias do deserto, quando, ao descer, o sol avisa aos homens a proximidade da noite.
Yadir se chamava o menino. E sempre, no entardecer, descia das montanhas com seus animais até sua pequena casa. A jornada havia sido árdua para ele: havia buscado pasto para suas ovelhas e, em troca, no seu alforje da lã não havia senão um pouco de pão – apenas o necessário para não passar fome –, nem mais água que o essencial para refrescar seus lábios.
Uma noite, numa reunião de cameleiros, Yadir ouviu que o homem que leva Deus em seu coração está ‘mordido pelo camelo’, e que essa mordida não cicatrizava nunca: a princípio era dolorosa, depois doce e, ao final da vida, enquanto o corpo jazia abandonado na terra, viajava a essência do homem a fundir-se nas estrelas. Yadir sonhou esta noite com cem camelos que o perseguiam.
Passou-se muito tempo, e num entardecer, intuitivamente, Yadir se ajoelhou e beijou as areias. De seus lábios brotaram palavras fiéis, e seu rosto de adolescente, como uma bússola marinha, encontrou o Oriente. A mordida do camelo estava em seu coração.
A partir daquele dia, Yadir aprendeu muitas coisas com particular precisão. Quando o vento soprava tenuemente, sussurrava contos ao seu ouvido; ao serem removidas pelo ar, as areias lhe ensinavam estranhas geometrias; o carrossel ondulante lhe outorgou a música; e num entardecer vermelho, um forte vento elevou as areias, fazendo-as girar em movimentos surpreendentes: Yadir aprendeu a dança. Seu coração sangrava cada dia mais.
Quando Yadir abandonou o deserto, o sol já não tinha horizonte; um fraco reflexo dourado o iluminou por pouco tempo, a escuridão o acariciou toda a noite, e no luminoso amanhecer, diante de seus olhos assombrados apareceu a cidade, cujas cúpulas espelhantes encheram suas pupilas com reflexos. Yadir sentiu medo, mas o vento que lhe cantava levemente fortificou seu espírito, os altos e esbeltos minaretes suavizaram o golpeio de seu coração, e entrou na buliçosa cidade com olhos assombrados.
Aquela mudança de vida foi transcendental para Yadir. Logo encontrou trabalho como tingidor de lã, e pouco depois aprendeu a arte de tecer tapetes. O princípio foi duro: suas mãos não eram tão hábeis quanto às de seus companheiros, porém os seus olhos, acostumados a ver o horizonte do deserto, viam mais além nos complicados desenhos, nas mensagens geométricas dos tapetes. Yadir teceu um para ele, e naquela noite, ao termina-lo, um velho mestre tapeceiro lhe presenteou com uma rosa branca e estranha.
A partir dessa noite memorável, a vida de Yadir foi muito intensa; cuidou e respeitou o seu corpo, modelou o barro, submeteu o cobre, escreveu com traços formosos, manejou o sabre, desenhou jardins, e, uma vez, seus olhos se fundiram na luz de uns olhos femininos... Yadir conheceu o amor.
Yadir fundou um lar que durou muitos e felizes anos, até que um dia, Aquele que cria todos os desenhos decidiu que Yadir ficasse só. Yadir aprendeu a chorar.
O amanhecer seguinte sentiu falta dos joelhos de Yadir afundando as areias: seu rosto não quis buscar o Oriente e seus lábios esqueceram as palavras fiéis. Abandonou a luz das mesquitas e frequentou lugares escuros; suas pernas acostumadas à dança esqueceram o ritmo: o tambor de seu coração não as impulsionava. Abandonou também a habilidade de suas mãos; seu sopro não percorreu o interior dos bambus; e uma noite suplicou ao anjo da morte que apressasse seu passo. Quando os dedos do sol acariciaram seu rosto essa manhã, sobre seu tapete havia uma branca e estranha rosa. Yadir recordou do Dissipador de Todas as Dificuldades e sentiu sangrar de novo seu coração.
Curiosamente, os vizinhos de Yadir, e todos aqueles que o conheciam, pensavam que era um bom homem, como todos os bons homens da terra; só uns quantos se aproximavam com humildade a escutar suas belas práticas na casa de chá que frequentava. Falava-lhes do vento e da chuva, contava-lhes histórias de velhos tecelões de tapetes e anciões jardineiros de rosas brancas, lhes descrevia as dunas do deserto e lhes falava do sol e das palmeiras. Algumas pessoas temiam vê-lo de frente; uns poucos lhe olhavam nos olhos, mas entre eles nenhum resistia ao seu olhar; não faltou quem dissesse que tinha estranhos poderes. Quando o velho Yadir morreu, os vizinhos ficaram muito surpresos ao ver sair, por uma das janelas da casa, um bonito camelo que, voando, se perdeu no infinito.
Esta foi uma história que ele casualmente encontrou num velho e poeirento livro de contos – um daqueles que ele não costumava folhear, mas que, justo nesses dias, farejou – ele também sabia!
Se pensas que isso foi suficiente para uma tomada de decisão, lamento dizer-te que estás muito enganado. Ele ainda vai relutar um bom bocado (ou já deveria dizer um mau bocado?), apesar de tanto lhe instigar o estranho conteúdo do mapa... Mas esta coisa é toda uma história.
A questão é que ele tinha um medo a priori, uma espécie de convicção de que o mundo mágico era mau, qualquer coisa estranha era ameaçadora, apesar de a música lhe lançar a espaços totalmente desconhecidos. E ali estava – bem na sua frente – (finalmente, amigo, depois de tanto esquecimento!) o pacotinho de um rosa estranho, com o impecável laço de fita violeta, que (só agora se apercebia) em verdade, era muito mais escuro do que ele notara. Mas de tão transparente – mais que isso, diáfana – a fita parecia se fundir, se mesclar, penetrar e compor, perfeitamente, com o tal tom rosa escuro do celofane, numa espécie de fusão e diferenciação, harmonizados os opostos às últimas consequências, ao delírio.
Era quase de se desejar que ele tivesse resolvido jogar a merda do embrulho no lixo, de onde ele veio aliás. Muitos contratempos teriam sido evitados, sobressaltos tamanhos não ocorreriam, não haveriam tantos riscos nem desafios, talvez até ele pudesse cuidar melhor do seu cachorro. (O cachorro de que estou falando não é só o externo, o seu de estimação. É bom que fique claro isso, porque parece que é justamente aqui que seu cachorro, a fera interna, pode começar a fazer a diferença, no impulso para a sua tomada de decisão. Ou acaso pensavas que essa seria uma decisão puramente racional? Não, amigo. Sem fera não há salto! Entretanto, dessa fera ele ainda não sabe nada. Ou melhor, é sua prioridade, mas ele ainda não a reconhece. Talvez por isso permaneça frio, estancado no medo.)
Por outro lado, se pensas que tudo era medo, também te enganas, querido amigo, nenhuma história real é assim tão simples. Nosso herói era tão fechado quanto aberto, se permitia que sua atenção fosse presa dos seus afazeres, de igual maneira permitia que ela voasse aos cumes e fendas a que sua imaginação, ativada pela arte, como sabemos, era capaz de lhe conduzir. Assim, ele ansiava por algo mais do que aquilo que conhecia. E isso é um perigo, porque o que não conhecemos, pode trazer à tona aquilo que nós não queremos ver. ‘Malditos Beethoven, Hesse, Bach, Huxley e a puta que os pariu, que me incentivaram a mergulhar... no Nada!’

Encontro com o mestre ou ajuda espiritual: O herói encontra um mentor que o faz aceitar o chamado, e o treina.
Abre com certo respeito o embrulhinho. Presta atenção à fita e a enrola cuidadosamente, antes de abrir o celofane. Entra por sua janela aquela luz de amarelo forte, laranja e rosa do entardecer. Está diante da mesinha que usa como escrivaninha (removendo livros, cartas, contas e papelada acumulada) quando quer escrever alguma carta, coisa que raramente acontecia até aquele dia...
Dentro do celofane havia um papel tão velho (seria mais bonito dizer antigo) que parecia um pergaminho. Estava dobrado por tanto tempo da mesma forma, obedecendo às mesmas dobraduras, que, nestas, o papel estava quase se desfazendo, de tão sulcado e corroído pelo tempo, enquanto, pelo cuidado de manter a mesma dobradura, mantinha-se todo o restante do mapa em perfeito estado. Mesmo assim, para ele, nada era compreensível. Aquilo tudo (inclusive a decisão que logo ele iria tomar – a de procurar aquele velho livreiro, que tanto era capaz de lhe indicar, dentre os seus livros, as pérolas mais inestimáveis, quanto dizer coisas incompreensíveis) parecia uma coisa absolutamente descabida. Mesmo assim ele foi em frente.
Por um lado, acho que ele desejaria não ter jamais aberto aquilo (era quase uma caixa de Pandora!), por outro, isso o levaria a dar graças pelo resto dos seus dias.
Na parte superior da folha, acima do mapa propriamente dito, com uma caligrafia magnífica, elaborada ao ponto de não ser percebida num primeiro olhar, firmava uma data sem ano; apenas dia e mês. Só que era exatamente aquele dia e mês em que ele, por fim, havia decidido ver. ‘Hoje!’ Que estranha coincidência...
Depois de muito empenho, de tentativas de decifrar, sem ajuda de ninguém, conseguiu perceber o ponto de partida do mapa. Consultando arquivos antigos na prefeitura e nos registros de imóveis, ele já não teve alternativa senão concluir que o mapa partia... de seu próprio endereço! ‘Mas, que diabos, já começam a ser coincidências demais! Saco!’
Acho que nem preciso te dizer o quão aparvalhado ele ficou. Afinal, o que significava tudo aquilo? Claro que ele achou que estava delirando, ficando louco, perdendo a noção. Mas, pelo menos, teve a decência de, antes de se livrar daquela visão incômoda e inquietante, dobrar o maldito mapa usando as mesmas dobraduras com que ele havia chegado. Entretanto já não teve sossego.
Passou noites infernais, todo atrapalhado, daquele tipo de suar nas noites frias e tiritar nas noites quentes, antes de se lembrar do tal livreiro que lhe acolhia em seu desejo e em sua miséria, o que lhe mostrava o melhor dos melhores autores, e eventualmente lhe oferecia chá de jasmim nos fundos da loja, entre caixas de preciosidades. Esse senhor já o havia alertado acerca do poder da intenção sobre a realidade. Já havia tentado lhe fazer ver que a Vida às vezes passa ao largo da lógica, lhe faz pouco caso. E também às vezes pode passar ao largo de nossas intenções. ‘Merda de velho paradoxal!’
Verdade que nunca lhe dera muitos ouvidos, mas metido na situação em que estava, foi sedento até ele. Estava transtornado, já não havia mais o que pudesse pensar em fazer. Nem mesmo sabia por que estava indo até ele. Em que ele poderia ser ajudado, se nem sabia de que tipo de ajuda necessitava?!
O velho o recebeu com um sorriso bem disfarçado. Ele não notou, ainda que tenha captado a simpatia, e, talvez por isso, começasse a se sentir mais à vontade, se é que algo perto disso era possível naquela situação. Pois havia ali um incômodo gigantesco. Já começava a parecer que o seu achado se contrapunha frontalmente à sua opção de vida. O seu querer estar quieto no seu canto (qual canto queiras) já não era possível. Não poderia haver quietude para aquele que tinha o mapa em seu poder. Mais que isto, será que o mapa estava em seu poder ou será que ele já estava sob o poder do mapa? Não fosse a presença do velho livreiro, ele não veria a importância do mapa e de sua indicação. Só viveria o incômodo da situação. Afinal, aquilo ou era tudo ou era nada. E, a essa altura, o nosso amigo já está tão desnorteado que alegria ou dor já não são tão diferentes... Vive um momento em que não confia em seu critério.
Aos poucos (e, quero te dizer: muito aos poucos), nosso pobre homem se dispõe a escutar. O velho livreiro talvez (e finalmente) possa imprimir nele a marca – a mordida do camelo? – que lhe faça chacoalhar os ossos, derreter os nervos e músculos, e seguir o chamado, via intuição.
Muito bonito! Se sua intuição se mostrasse clara, se ele já estivesse tão fortalecido a ponto de não só reconhecer o caminho como de querer trilha-lo... Longe disso! E, ao mesmo tempo, quão próximo! Aquilo que o livreiro lhe dizia era, ao mesmo tempo, a coisa mais estapafúrdia do mundo e a de maior bom-senso, a mais clara constatação.
Naturalmente, passou um tempo (infelizmente longo) em que não podia se decidir. Enquanto isso, firme, conseguia manter sua rotina e seu rigor no trabalho, mesmo que por vezes se sentisse totalmente estranho ao seu corpo e aos seus atos (do corpo, de si mesmo, já não sabia mais definir). Manteve o rigor, mas o vigor estava aos fiapos. Dormia mal e pouco, seu apetite só não foi reduzido a zero porque, como ele então havia começado a fumar cigarros e, como marinheiro de primeira viagem, tivesse ressacas homéricas, com as fortes dores de cabeça e o escambau, descobriu que o melhor remédio era um bom café-da-manhã. Era, praticamente, sua única refeição. O mais era fumar e beber, que também tinha começado a apreciar sem moderação. Uma maravilha! Realmente, ou esse cara dá um salto ou desaba por uma fenda ao centro da Terra! E, é claro, se fôssemos fazer apostas, muito pouca gente apostaria em qualquer salto. Porém até nisso a vida gosta de nos surpreender. Dificilmente o herói aparece vestido de acordo, nem se sentindo de acordo, ou está pronto. Na verdade, essa falha parece ser até um bom sinal. Dá a impressão de que se o cara estiver se sentindo adequado e confiante, terá dificuldade em passar pelas vergonhas, a humilhação e as desilusões necessárias à jornada. (Como se ele soubesse que estava metido em alguma jornada!)
Por uma paranoia do tipo ‘eu não posso mostrar o mapa, que pode ser dum tesouro’, ele apenas o mencionou, em sua conversa com o livreiro. Naturalmente, isso não seria suficiente para o velho poder ajuda-lo. Mas foi! O velho, não se sabe de que forma, pôde lhe insuflar o ânimo e a lucidez necessários para ele começar a decifrar o mapa.
Voltou para casa cambaleante, apesar de não ter bebido nada e de ter-se esquecido de fumar por todo o tempo em que esteve na livraria. Foi direto ao mapa. Com todo cuidado, apesar de sua premência interna, desfez o laço de fita que tinha tido o respeito de refazer, desdobrou o celofane (que já lhe inspirava algum tipo de voo reflexo), chegou ao velho papel – dobrado e desdobrado tantas vezes que ele não poderia saber. E, agora parecia obvio, ele indicava a direção leste, a partir de sua casa. Viu que alguns traços tênues marcavam os quarteirões, que iam do seu bairro para além. Fez as contas. Mentalizou como a um algoritmo, com suas porções e proporções, e então saiu, desalinhado como estava, mas destemido.
Na rua, olhava mais para seus próprios passos, contando e calculando, do que para o lugar para onde estava indo. E assim, contando cautelosamente, e medindo pela escala que havia bem calculado, chegou à porta da livraria! Quer dizer, quase à porta, pois só então lhe veio à memória um dado que havia no mapa, indicado com um caligráfico B, aparentemente nomeando algum anexo ou apartamento.
Não conseguiu deixar de ser linear, e, já que estava ali, não poderia tocar outra campainha que não aquela do livreiro, mesmo que não correspondesse ao B.
Como vou conseguir te descrever o sorriso (novamente) com que recebeu ao nosso afortunado infortunado? Não sei como ser impassível diante desse tipo de situação que esculhamba as nossas certezas e convicções.
Obviamente, o endereço não era o A, mas o B, que ele (o livreiro) lhe disse estar alugado para um velho agricultor aposentado (não sabia de que região vinha, mas que lhe inspirava o mais profundo respeito). Como o velho estava ali, o livreiro fez imediatamente as apresentações. Agora sim, a cabeça do nosso amigo acaba de dar um nó! ‘Como assim? Então tudo isso começa com um reles colono?! Afinal esse caminho é para frente ou para trás? Para o futuro ou o passado? Que merda!’ No entanto, o porra do velho, de alguma maneira que não lhe era muito clara, fez ver que sabia a direção, ainda que nem de longe parecesse saber o propósito. Ou seria o contrário?
Independente disso, talvez por intuição, talvez por nada mais que puro desespero, o nosso amigo confiou naquele homem, que imediatamente começou seu trabalho, sem que ele sequer se desse conta disso. Termos de referência diferentes geram percepções diferentes.
O fato é que o velho – que, depois de muitos anos viúvo, tendo os filhos todos migrado para as cidades, sentiu-se livre para buscar conhecer outras culturas –, sem dizer muitas palavras, lhe deu uma leitura, uma forma de ver. O mapa, a partir de então, parecia trazer indicações um pouco mais claras. Ufa! talvez a vida pudesse ter algum sentido, afinal.
‘Será?’

Cruzamento do primeiro portal: O herói abandona o mundo comum para entrar no mundo especial, mágico.
O fato é que o encontro com esse velho, aparentemente tão simplório, começou a lhe fustigar. Ah, como é difícil definir tudo o que lhe suscitou a presença do velho! Já vimos que, num primeiro momento, foi pura e simples desconsideração – justificada pelo jeito velho do velho. Vá entender! (Se é tão simples, não pode ser tão bom. Não pode ser verdade.) Ressabiado, o cara não era capaz nem mesmo de conceber que alguém tão simples pudesse dar qualquer indicação, sem perceber que mais ressabiado do que ele estava o velho, que não podia crer que a busca essencial estivesse nas mãos de um bocó tão contumaz.
Tentou lhe mostrar que a importância estava no próprio caminho, no seu trilhar. Entretanto, quem disse que esse pobre coitado podia ouvir? A essa altura, sem que sequer soubesse disso, ainda necessitava se validar como pessoa. Rechaçou o velho como a qualquer trapo inútil, como a qualquer treco que se encontrasse no lixo. E de lixo ele estava começando a se sentir um verdadeiro expert. Ah, como os sentimentos podem nos enganar... E enganam com toda convicção! Imagina se esse boçal pode ser expert em alguma coisa! Contudo (melhor seria dizer conada...), ele considera que sim, necessita cultivar algumas certezas, alguma coisa em que possa se basear para seguir vivendo, sem riscos de demência, parecendo estar à beira de um transbordamento, desejando-o e evitando, como se evitar fosse necessário para manter o contato com o mundo. Vai ver depois que tal contato pode se dar em espaços muito mais amplos. Todavia, é cedo para falarmos do que ele ainda não sabe. Nem eu.
Vai embora da casa do colono, agricultor, bugre, véio ou como queiramos chamar, tanto faz, andando com passos pesados e furiosos, pelos becos, ruas e longas avenidas que separavam seus dois endereços. Dorme que é uma merda aquela noite (ainda bem que era sexta-feira!). De manhã cedinho, ao se aproximar da casa do véio (Sim, acredita?!), pois nada mais tem sentido fazer, nem isso também, mas enfim não importa, vai aos poucos ouvindo um coral. A princípio, apenas lhe cativa a suave melodia, que ele escuta ao longe. Mas, à medida que vai se acercando da casa B, mais vai ficando claro: aquela suave melodia em coral vem dali mesmo, de dentro da casa (se é que podemos chamar casa ao anexo, puxadinho, meia-água) do velho agricultor. Tarda a tocar a campainha, com receio de que a música se interrompa, porém por fim o faz. Felizmente, nem por isso a música cessa. O senhor da casa o vem receber com cara de que o esperasse. Convida-o a entrar, ele se vê numa pequena sala, ampla de aconchego, cheia de objetos e recordações, de discos, livros, fotos, quadros e esculturas. O coral, depois de perguntar, soube que era da Paixão Segundo São Mateus. Pirou! Primeiro, ele não conhecia a obra, no entanto podia reconhecer a marca do autor e a sublimidade. Principalmente, segundo, como é que aquele véio xucro podia estar viajando nesses caminhos?! Deixa pra lá!
Ele não sabia nada de caminhos. Tanto que entra na casa do velho sem se dar conta de que já estava indo para uma dimensão outra. Porém, não quero me precipitar. Falta de consciência basta a dele, deixa-me tentar manter a minha, pelo menos da narrativa... O fato é que, desta vez, ele vem com o mapa. E parece já não ter mais muita preocupação de mantê-lo oculto. Na verdade, mal entra na casa do velho e se esquece do mapa que traz no bolso (de outro paletó), tão embevecido fica com a música e tão pasmo de encontrá-la ali, naquele lugar de aparência tão ínfima. O velho o convida para um chá e lhe pede licença para ir preparar. É tempo de ele ficar sozinho naquele ambiente, que já não parece deste mundo, tudo parece mais vibrante. Claro que a Paixão deve ter dado um bom puxão. O fato é que ele se deparou com a questão das nossas intenções. Viu que tanto podemos colocar nossa melhor busca no horizontal – ou seja, em sermos bons nesse nível, nos sobressairmos com muito sucesso, produzirmos riqueza material, impulsionar o mundo nesse sentido, – como no vertical, a aspirar ao mais imaterial, quem sabe inspirar? Naquele momento, o máximo que ele consegue inspirar é o delicioso aroma do chá, mescla de jasmim, que o velho trazia para servir. Ele parecia fundir os dois.
Após o primeiro sorvo, não foi capaz de conter o pensar em como aquele velho miserável podia dispor de um chá chinês (que só poderia ser), enquanto ele, em casa, de nada mais dispunha que de um chá preto qualquer. Mas isso era o de menos, ali naquela situação. Ele logo veria que o velho dispunha de muito mais do que chá chinês.
O velho começa a lhe falar da sua rotina (a dele mesmo, não a do velho), mostrando pleno conhecimento e, mais, reconhecimento por sua bravura em manter em dia e de forma impecável suas atribuições profissionais. O que lhe imbui, instantaneamente, de admiração e respeito pelo tal senhor que a vida pôs em seu caminho.
E, tão naturalmente quanto mostrava compreensão por seus feitos, começou a desvelar os seus defeitos, as suas falhas, todas as hesitações em momentos de escolhas decisivas, como quando houve a oportunidade de se aprofundar nas conversas com o livreiro e preferiu ficar no seu mutismo seguro e incômodo, ou quando se eximiu de dar ao chefe da repartição a contribuição das suas acuradas observações, simplesmente para não correr o risco de ser mal interpretado, ou, pior, quando ele teve a oportunidade de estabelecer contato com uma espécime do outro gênero (só assim ele via!) e se negou, por pura timidez... Resultado: agora começava a odiar o velho.
Só que não era tão simples assim. Não dava para negar a inspiração, o insight gratuito que teve enquanto estava ali aguardando o chá, a exaltação que vinha da Paixão que ele não conhecia (nem a obra nem o sentimento). Então ali estava ele, apaixonadamente percebendo o quanto se impunha limites. É verdade que havia sensibilidade, que ele sentia os ares do sublime... Mas epifania é outra coisa. Um evento como esse te transporta a outras dimensões, abre novas visões e revela sentimentos inusitados.
Depois de algumas xícaras de chá, de algumas conversas curtas, entremeadas com o silêncio banhado por Bach, finalmente com o coração mais apaziguado e a mente menos embaralhada, pediu ao velho que lhe ajudasse na leitura, na interpretação do mapa. Abriu-o sobre aquela linda mesinha redonda, de madeira antiga e muito bem conservada, com duas cadeiras igualmente de madeira antiga e bem conservadas, forradas em elegante veludo cor de berinjela, onde o velho gostava de tomar chá; ainda que não tivesse sido assim nesse dia, pois nosso herói só o que pudera fazer, logo na chegada, fora afundar-se no sofá, deixando ao senhor da casa aquilo que lhe pareceu ser sua poltrona predileta. Não me pergunte como é que ele pôde dar atenção a isso, considerando as condições em que se encontrava. Só agora, com a lembrança do mapa, foi que ele se dispôs a se desgrudar do sofá, afundado que estava em seu aconchego.
A mesinha parecia haver sido desenhada para conter o mapa, ou o mapa sido dimensionado para inscrever seu quadrado perfeitamente no círculo do seu tampo polido. Por cima, mostrava facilitar ao velho seus movimentos de, pouco a pouco, girar o mapa. Claro que, a princípio, ele julgou que o homem simplesmente não entendia nada.
Porém, logo pôde perceber que era aquele justamente o modo, o sentido da leitura, numa espécie de vai e vem, para que se pudesse ver os sentidos mais amplos. Só que essa leitura fez ver ao mestre que não poderia revelar o percurso todo de uma só vez, numa tacada só, visto que certamente o nosso amigo embaralharia tudo, se borraria de medo de empreender tal caminho. Decidiu, portanto, ater-se à etapa inicial, aquela que, em parte, nosso querido amigo já havia decifrado. A parte que lograra ler foi o que lhe conduziu àquela casa. Ou será que poderíamos dizer àquele plano? Entretanto só o que ele não percebeu foi que o caminho era não só de ida, mas volta! Alguém chamaria esse momento de Estupefação – o retorno. Sim, que grande novidade ou descoberta pode vir de sua própria casa? ‘Merda, tudo de novo!’ Sem se dar conta de que sua casa tinha mais de um sentido. Foi preciso que o mestre lhe explicasse o conceito de casa interior. Porém tudo o que podia fazer era dar-lhe orientações, porque as visitas a seu espaço interno, ele só poderia fazer sozinho. A busca era pelo conhecimento, reconhecimento dos estados internos.
Vá agora definir para ele o que são estados internos. Para um tipo tão pautado por sua razão, seu raciocínio e seus pensamentos, não parece muito natural observar as suas emoções, seus sentimentos e suas motivações íntimas. A verdade é que o velho lhe falava do espaço psicológico, do qual ele jamais tivera consciência. É muito interessante que uma pessoa possa ser tocada pela arte, possa percorrer as nuances psicológicas nos meandros dos personagens de um Dostoiévski, por exemplo, e ter ativada sua percepção sutil, sem com isso trazer para si, para a observação de si mesmo. Mas pode.
Estava lançado o convite. Assim o mapa sinalizava.
Ele já estava partindo, novamente com o coração algo pesado, fronte franzida, quando o mestre lhe presenteou com os três discos da linda Paixão Segundo São Mateus, embalados em uma caixa contendo o livreto em diversos idiomas. Pronto, essa seria a trilha sonora dos vários dias, semanas, em que ele ia se dedicar a contar-se sua própria história.

Provações, aliados e inimigos, ou A Barriga: O herói enfrenta testes e aprende as regras do mundo especial. (Para o mundo especial o herói precisa nascer de si mesmo. O velho modelo e a velha personalidade já não servem.)
O processo, de acordo com as instruções que recebeu do mestre, começava pela intenção. E já aí empacou. Clarear para si mesmo qual era a verdadeira intenção exigia uma indagação bem mais sincera, honesta e sem preconceitos do que ele se sentia capaz. Nem toda a arte a que teve acesso podia lhe socorrer naquele momento. Ou, pelo menos, era assim que ele entendia então. Só mais tarde foi possível a ele ver que, na realidade, os mais elevados estados que ele havia atingido foram justamente aqueles propiciados por suas visitas a museus e algumas galerias – às quais ia apesar de certo desconforto por saber que não ia comprar nada –, por suas longas horas de leitura, pela música...
Tornou-se ainda mais reflexivo, e assim perdeu o que lhe restava de espontaneidade. Pobre homem! Tudo o que ele mais queria era estar quieto no seu canto (novamente o canto...), contudo, justo nessa hora, seu chefe resolve lhe promover, como um reconhecimento por seu empenho e bons serviços. Todavia, isso significou que suas horas de dedicação ao trabalho tiveram que passar a ser muito mais numerosas. Era exasperante! Ao mesmo tempo em que começou a lhe possibilitar comprar certas obras de Jung, Huxley e James que acenderam muitas luzes no caminho de autoconhecimento. Podes estranhar Huxley nessa lista. Confesso que eu não.
Seu cachorro, velho companheiro, parecia dar-se conta plenamente da necessidade do seu dono, e quase não apresentava demandas, só mesmo o passeio noturno para cagar e mijar não podiam ser esquecidos, pois mesmo aquela sua alimentação tão regular e infalível havia se transformado em tão aleatória e parca quanto a do dono. Incrivelmente, no entanto, ele não dava mostras de se incomodar com isso. Good dog!
Só com o que nosso amigo não contava foi que depois da morte da senhorinha que morava ao lado (e que às vezes lhe trazia um bom pedaço de macio bolo de fubá, ou uma generosa, quentinha e saborosa porção de galinha caipira ensopada), mudou-se para o apartamento um casal jovem entusiasta da música sertaneja. A paz que lhe restava, a externa, digo (já que a interna se havia esvaído toda com a descoberta do tal mapa e com tudo o que isso gerou nele), acabou em batidas repetitivas e melodias óbvias. Era um inferno! Pouco depois, percebeu que nada é tão ruim que não possa ficar pior. Mais decibéis ainda que a malfadada música de que eles gostavam tinham as brigas homéricas, que eles não se importavam que o prédio inteiro ouvisse. Puta que pariu! Ninguém merece!
Foi dessa forma que ficou mais rápido para ele levantar o véu de civilidade com que havia aprendido a cobrir a sua ira. Afinal, parte daquilo por que tinha sido reconhecido em seu trabalho – tanta dedicação e tanto esmero – vinha tecido no mais puro e direto perfeccionismo que, como se sabe, contém a ira tanto no impulso de querer corrigir o mundo como na frustração de nunca o conseguir.
Se sua paixão oculta era a ira, seu medo era mais óbvio. Verdade que estava também presente naquele seu velho e elogiado perfeccionismo – como uma tentativa de ter tudo muito arrumadinho, para não ter que se deparar com o caos da vida –, mas seu medo ia muito além, revelando o mais básico sentimento do ser humano, o desamparo. Até ao reconhecimento disso ele foi, porém quem disse que tão profundamente que chegasse ao ponto de perceber sua imensa interferência nas escolhas que ele fazia? É pedir demais? Que o cara construa as pontes entre a leitura e a ação, entre o seu discurso e sua atitude? Unindo razão e sentimento? Entretanto é exatamente aí que ele necessita focar sua busca nesse momento. Ali estava, diante de si, o retrato completo da sua apatia, do seu encolhimento, dos suspiros impotentes.
Falando em suspiros, a partir da melancolia, que tão nobre e facilmente brotava em seu contato com a arte e, depois, consigo mesmo, não foi difícil entrar na tristeza e na dor. Ah, quanta saudade de si! Quanta dor havia pela separação existencial! Quem quer se aventurar em algum caminho de tomada de consciência precisa, antes de tudo, se deparar com a solidão básica que sofre cada ser vivente. Nascemos sozinhos e morreremos em iguais condições, mesmo que tenhamos construído toda uma parafernália para tentar nos esquecer disso.
Seu chefe (só agora, com seus novos conhecimentos, ele podia ver), atado na maior incompetência, sem potência para encarar as suas atribuições, começa a lhe encarregar dos mais diversos assuntos, que ele próprio (o chefe) não entende o mínimo. Ele já se perguntava se aquilo havia sido uma promoção ou uma condenação. Então, para não se deixar atropelar por isso, para não correr o risco de perder o foco principal da sua atenção, decidiu contar-se a sua própria história, como se fosse um conto. Seria como um passar a limpo, esperançosamente, rever tudo com um olhar mais amplo e consciente. Achou por bem fazer por escrito, talvez para poder se aprofundar e notar sentido. E haja fundo musical! Dessa vez, ele andava entre o canto gregoriano e um disco que um colega de trabalho, que sabia do seu gosto por música, havia lhe emprestado, de David Darling, todo em violoncelo solo. Tanto lhe servia de fundo para sua escrita quanto enlevo nos momentos de pausa para reflexão ou descanso. Ele já não se lembra de quantas dezenas de vezes repetiu o disco, nadando nas ondas da afinada vibração das cordas. Aquilo parecia ser a sua salvação. Aquilo que digo é tudo aquilo, tudo a que ele estava se dispondo a viver.
Tinha a sensação de estar nascendo. Sequer sei se cabe dizer ‘de novo’, visto que nada da sua vivência anterior se poderia chamar ‘viva’. Mais parecia que tudo o que vivera fazia sentido enquanto percurso para chegar ali. Será que podemos chamar a isso nascer de si mesmo? É que fica parecendo pretencioso (eu bem sei), quando, na realidade, ele está apenas vivendo isso, sem que ainda seja capaz de compreender e expressar. Ele sente nas células. Verdade que confusas, entre o sabor do simples deleite de vida e o perfume de morte, aniquilação – pois algo precisa morrer para que o novo possa vir à vida. O velho modelo precisa ser superado, aquela velha personalidade – no caso dele, apequenada e fuinha – já não é suficiente. É um momento crucial. Abandonar a velha e costumeira personalidade é abrir mão de certezas e segurança. Nós nos identificamos com a personalidade que construímos, que vemos como eu. E cremos que não ter essa personalidade é não ser.
Tu podes estar te perguntando como é que esse sujeito pode viver tantas descobertas, percorrer tanta sombra e tanta luz, enlevos tão sublimes e constatações tão difíceis e duras, levando a merda de vida que leva. Sim, pois se seus dias estão preenchidos pelas exigências histéricas do chefe, suas noites convivem com os shows de horror dos vizinhos em barracos sertanejos!
Como esse fulano se inspira?
É que ele havia descoberto as madrugadas. Certamente te recordas que há muito não dormia mais que umas poucas horas. A princípio isso lhe deixava um pouco sonolento (especialmente depois do almoço), porém logo a preguiça virou pique, e o pique, lucidez. Nem mesmo a lombeira lhe tomava mais, mesmo porque ele mal almoçava, seu estomago parecia precisar de espaço para digerir algo mais substancioso. Algumas madrugadas eram cheias de bebida e de cigarros, outras nem água. Em alguns fins-de-semana podia chegar a dormir dez horas a fio ou trocar o dia pela noite, escrevendo a sua própria história. Felizmente os barracos que os vizinhos armavam pareciam curvar-se às madrugadas, em reverência e silêncio. Ou será que eles se curvavam em novas posições, muito melhores que as de combate? Se é que tu entendes o que quero dizer.
Também lhe veio em socorro o hábito de aproveitar o horário de almoço para cochilar por uma hora. Assim ele se refazia e, bravamente, encarava as mil tarefas que o bosta do chefe lhe impunha. E, naturalmente, aconteceu que foi ficando mais fácil, menos pesado, cumprir com suas obrigações. As pessoas chegaram a notar. Ele já não se mostrava tão sisudo, apesar de ter assumido muito mais obrigações do que tinha antes, passou a estabelecer mais contato com os (e as!) colegas de escritório. Nelas então ele jamais havia notado, corria disso como o diabo foge da cruz! Imaginar o resultado de um envolvimento com uma colega... Melhor era nem olhar!
Nesses novos tempos, não era assim. Ele se comunicava! Começou até a se interessar por pessoas, pelas pessoas em si, quaisquer, as que estivessem em sua presença. E talvez aqui esteja a chave. Ele começava a ser presente. E isso significava estar disponível, mais acessível, interessado no entorno. No entanto, em que poderia ele ajudar, se ainda não aprendera a valorizar seus atributos?
À medida que os reconhecia, ele os ativava, e punha em movimento seus talentos e sua coragem despertada. Já não é um zero à esquerda, mas alguém que aporta.

Aproximação: O herói tem êxito nas provações.1
É assim, nesse insipiente estado de presença, de recém-saído da caverna da existência obscura, que nosso amigo entra numa baía de águas claras e calmas, resplandecentes sob um sol límpido de outono. Dessa vez o velho o recebe ao som de Keith Jarrett (numa clara alusão ao seu David Darling), com um café recém passado e... um bolo de fubá! E vou te dizer que nem tudo isso junto pôde lhe causar espanto. Acredite. O maior espanto foi com a própria sala em que o mestre o recebeu. Era a mesma sala, aquela do sofá aconchegante e acolhedor, da poltrona confortável e da mesinha redonda com as duas cadeiras antigas forradas com veludo berinjela. Pelo que ele podia se recordar, todos os objetos estavam no mesmo lugar, na mesma ordem (e olha que ele era peco em observar ordem). No entanto, dessa vez, apesar de ser a mesma horinha do amanhecer, havia uma luz que não era a mesma. Para falar a verdade, a luz não parecia vir de fora, mas irradiar da própria sala. Não que ele tivesse visto qualquer tipo de brilho através das janelas quando estava chegando; tudo normal, visto de fora. O que parecia haver ali dentro era uma espécie de fulgor, um esquisito jogo de luz natural que reforçava determinados contrastes enquanto fundia umas formas com outras, figuras e fundos.
Ainda que tivesse certeza de quem estava tocando aquele piano transgressor, não conhecia o La Scala. Encantar-se com tal elegância de linguagem e desprendimento não foi nada difícil para ele, que, nessa ocasião, por primeira vez, abraçou o velho. Tinha cheiro de madeira, pedra, terra e ervas. E um calor que ele não sabia, nunca provara, sua pele não havia alcançado. Ele se emocionou, estava em gratidão, respeito e esperança. Ah, se esperança bastasse! Indispensável sem dúvida que é, mas é necessário tanto mais! O mestre agricultor não foi tão efusivo, ainda que tenha demonstrado claramente sua receptividade e apoio. Conheces aquela certeza de se estar vivendo algo que não pode ser tocado pelo olvido? Assim foi esse encontro de dois buscadores, assim o encantamento dum e o humilde reconhecimento doutro. Qual deles é qual? Faz diferença saber, ou o que vale é o evento em si, sem hierarquia, com simples respeito mútuo e consciência da necessidade? Sua conversa, com tantos silêncios quanto a bela composição, foi muito além dela. Em tempo e referência. Passaram por Garbarek e por Fromm, o senhor leu trechos de Rumi e de Hafiz. Era tudo tão adequado e próprio! Que tempo há entre o que se vê hoje e o que se viu antes? Quando o verbo é ver, o tempo não é.
Foi de puro deleite aquele encontro. E de puro encontro aquele deleite. Acho possível que entre as experiências culminantes esteja em destaque o encontro entre seres humanos imbuídos de admiração e respeito mútuos. No perfume que aspiravam estava o alimento verdadeiro; na música, o reflexo da base harmônica própria a suster tal encontro; no café, o pretexto do estímulo; no ambiente, a construção anterior, o preparo. Dessa forma ele pôde ver que não são somente os interesses egoístas que movem o mundo. Na realidade, move-se o mundo de tal maneira que largamente ultrapassa o tempo que qualquer egolatria possa durar. Então, o que é mais real? O que podemos ver, medir e contar, ou aquilo que nós não somos capazes de mensurar, mas de alguma forma temos certeza de que é?
Dá para ver que esse encontro foi bastante diferente do anterior, ainda que não essencialmente – deve-se observar. É verdade que no anterior ele catava mantimentos de uma despensa sem fim. Enquanto agora ele vinha plantar uma muda no jardim. É bem possível que em algum ponto ele também possa manter uma despensa, um reservatório que sirva àqueles de verdadeira necessidade. Sem vaidade nem pretensão, era nessa onda que ele estava, na certeza de não estar só, quando o velho lhe ofereceu um almoço. Olha que até aquele ponto ele mal tinha se dado conta dos rápidos momentos em que o velho se ausentava. A comida estava pronta. Acho que eu não precisaria dizer qual era, porém eu não posso resistir... Quem pensou em galinha caipira ensopada acertou! Mais completamente acertou o anfitrião, que a fez acompanhada de escaldante e macia polenta. Às vezes podemos nos sentir em casa sem nem saber ao certo onde estamos. A casa do velho já não era a casa do velho, o velho já não era o velho, ele já não era ele, ao mesmo tempo em que reconhecia que nunca fora tão ele mesmo como agora, o velho tão o velho mesmo, a casa tão ela mesma – uma entidade benfazeja.
Com a anuência no suave sorriso do velho, ele se esticou no sofá, logo depois do almoço. Quer coisa mais caseira? Queria a horinha de sono. Acordou ao anoitecer! Se por um lado estava tonto, sem saber onde estava, por outro, ele estava novo. Novo. Não sei como melhor definir o vigor casado com a lucidez. Para completar, nosso gentil anfitrião o espera com um delicioso suco seguido de um caloroso abraço de despedida – sabendo que muito em breve eles se veriam novamente.
Vai nosso personagem de volta a casa, reconfortado pela acolhida, renovado em sua força. Está com o gás todo, e fica até tarde escrevendo. Quando por fim decide deitar-se, crê que vai cair no sono em poucos minutos. Ledo engano. O sono lhe escapa como se não fosse mercadoria de primeira necessidade. E finalmente, depois de muito rolar de um lado a outro, dorme um sono agitado, coroado por um pesadelo em que a terra se lhe escapa de sob os pés. Apesar de ele já haver frequentado as zonas escuras de si, se assustou com tamanho abismo. Contudo não lhe pareceu adequado buscar o mestre tão imediatamente (logo no dia seguinte!). Considerou que poderia lidar com a situação e buscar seu significado, afinal, melhor não nos esquecermos que nosso herói está imbuído dos melhores propósitos e abastecido com os mais puros alimentos, as melhores tâmaras.
Entretanto, seguem se repetindo pesadelos semelhantes, de abismos que se abrem ou destruição de qualquer tipo. É uma situação estranha, para não dizer interessante – o que pode parecer indiferença. O sujeito vive em sonhos os infernos mais abissais, e na vigília uma cálida sensação de cumprimento, de campos que também se abrem, mas no sentido de descortinar, e não de fender. Bem, quem sabe são o mesmo? Porém ele não vê assim. Para ele não faz sentido que numa hora em que afinal tudo mostra encaixe, a compreensão flui e abarca, esteja perseguido por visões as mais tenebrosas. Assim, depois de alguns dias nisso, nessa gangorra entre céu e inferno, não resiste mais e vai em busca do seu orientador.
Bastou que este não estivesse em casa para nosso amigo se afundar no mais absoluto abandono. E, logo, na raiva infantil que costuma subjazer a tal sentimento. Sem poder conter as pernas, deambulava pelas ruas ao redor da casa (puxadinho, meia-água ou de que merda queira chamar), quando se depara com o velho – em sua melhor figura! – saindo da missa de domingo com a cara mais beatífica que se possa imaginar. Era de causar repugnância! Com toda aquela sabedoria, como podia se fazer de desentendido e frequentar a missa de domingo tão candidamente?! Só muito tempo depois é que veio a saber que aquela era a forma de paquerar as viúvas e tirar o atraso de ambos. Esta informação não tinha a menor chance de penetra-lo nesse momento, tão elevado estava. E não sem razão. O tipo havia transposto o umbral da sua visão condicionada e experimentava ser porque sim, enfim! No entanto, ser si mesmo não é, de forma alguma, estar em constante estado de inspiração, paz ou mesmo da mais entusiasta vibração, é sim estar no sétimo céu, contudo tanto quanto no sétimo nível do inferno dantesco. Talvez signifique justamente ter a capacidade de lidar, equilibrar, cerzir um no outro (se é que um e outro são separados). O fato é que ele se sentia integrado, e, para alguém acostumado por tanto tempo à fragmentação, aquilo era puro poder. De fato, acreditava que nada poderia abalar sua convicção no positivo.
É impressionante que, depois de tantas experiências, de estudos e de vivenciar contato com a fonte, esse imbecil ainda considere que positivo é melhor que negativo! Mas deixemos passar, pois essa é realmente uma questão por demais espinhosa, que talvez só os místicos, os poetas, os criadores, que pariram, a partir da imensa dor e do terrível sentimento de separação, coisas capazes de nos conduzir aos mais elevados estados de integração... Talvez só eles tenham unido os dois polos em si mesmos. Se bem que, muito próximo a ele, o velho agricultor não dava mostras de fazer este tipo de seleção, parecia mais que ele aceitava as vicissitudes com a mesma calma com que aceitava o sorriso quase recatado de uma viúva voluptuosa. Mesmo porque já sabia que muitas vezes aquilo que se apresenta como bênção pode rapidamente se revelar maldição, e vice-versa. Ah, se a vida fosse tão óbvia assim! O mau se mostra como mau, vem vestido de mau e se revela como tal; o bom é sempre bom, vestido e caracterizado de bom e só o que mostra é bondade! Não, meu amigo, este é o campo predileto da vida para mostrar sua complexidade e suas surpreendentes maravilhas. Nada é previsível.

"Caminhante, não há estradas,
apenas trilhas do vento sobre o mar."
Antonio Machado
Provação difícil, traumática: A maior crise – de vida ou morte.
Um belo dia, o babaca do seu chefe vem esbaforido com a notícia de que havia recebido um memorando impondo que lhe fossem concedidas férias (a ele, não ao chefe, que nem um pouco estaria esbaforido por isso), pois, por lei, não se podiam acumular três períodos. Óbvio que, de imediato, ainda mais por ser imposição, ele repudiou. No entanto, logo a ideia de poder se desvencilhar por algum tempo daquela montanha de afazeres cinzas lhe pareceu muito convidativa. Ele se convenceu de que teria férias agradáveis! Poor guy! Embora, eu mesmo deva confessar que, no primeiro momento, penalizado talvez, me liguei em férias, sem nem me lembrar o processo que ele estava vivenciando, e para o qual não há férias nem refresco.
Ele teve a lucidez de não desperdiçar a oportunidade. Ia se dedicar ao mapa, à busca. Apanhou o mapa guardado, bem guardado por sinal, já então não mais esquecido num bolso qualquer de paletó, e logo se arrancou para a casa B. Desta vez, por mais alvissareiras as possibilidades que se abriam, não foi com tanta sede ao pote, ou com tanta ânsia ao encontro do mentor, o que não o impediu de ir já à tardinha, logo depois de ter saído da repartição, só passou em casa pelo pacote. O cão que aguardasse mais um pouco para as suas necessidades. Sorte que o velho companheiro não era dado a vinganças do tipo cagar no tapete... Sim, ele tinha um tapete! E não era qualquer porcaria não, era um belo kilim turco presenteado pelo livreiro por ocasião de sua mudança para o apartamento, comentada en passant numa conversa com chá. A gentil elegância do humilde livreiro há muito lhe chamara a atenção e cativara.
Na casa B não havia luz acesa nem música tocando. Ele, à medida que se acercava, já ia se perguntando se acaso haveria alguma missa naquele horário, quando, sem que tivesse tocado a campainha, o velho homem abre a porta para recebê-lo. As luzes se acendem, o aparelho começa a emitir os primeiros acordes do delicado concatenar d’As Suítes Francesas, sem qualquer movimento do velho ou controle remoto. Já nada mais lhe espanta, ademais, não tem ouvidos para música neste momento, mesmo que a escolha tenha sido tão precisa. Nada de arroubos para essa hora, apenas uma inspiração constante e suave. Ele já entra desembrulhando o pacote rosa escuro, com seus reflexos azulados – agora mais perceptíveis do que nunca – e vai diretamente à mesinha redonda. Só não tem a descortesia de sentar-se antes que o senhor o convide a isso. Tira e novamente enrola a fita violeta, desdobra o celofane com igual respeito, abre o mapa com reverência. E, mesmo antes de o velho começar a gira-los (ao mapa e a ele – quase parecia girar não só a eles como a própria mesa e todo o ambiente), percebe espirais que antes não havia notado. Elas quase parecem querer ultrapassar o próprio desenho. O velho mestre agora reconhece nele a capacidade de empreender a jornada. E, afortunadamente, agora ele pode viajar, o mestre cuidaria dos cachorros (os dois: aquele de estimação e o do instinto. Fisicamente do primeiro; energeticamente do segundo). Para onde deve ir é a fundamental questão que se impõe nesse momento. E sabemos que, por princípio, ele tem ojeriza a imposições. Porém não se pode fugir às indicações do mapa, ou joga-se a toalha de vez.
Felizmente, nós estamos lidando com um tipo que já foi mordido, que tem ânsia, premência, e quer seguir. Esta é sua bênção e sua danação. O idiota quer ir de peito aberto ao destino que o mapa indica, crente de que lhe aguarda um tesouro, oculto nalgum prado magnífico, sinalizado por uma pedra de toque, quem sabe na Serra Nevada, a fonte de toda água cristalina de Alhambra... Segura teu sonho, irmão, a brincadeira aqui soa bem outra! O mapa não aponta para um prado magnífico ou praia paradisíaca no Caribe, mas para uma favela na metrópole... ‘Era só o que faltava! Grandes férias me esperam!’
A direção que o mapa (maldito!) apontava desembocava num amontoado de pontinhos ao redor de um pequeno retângulo azul e vermelho. Pela posição no sutil traçado da cidade, e o sentido convergente das espirais, o velho sabia que se tratava daquela favela, e ele deveria buscar aquele retângulo. Oh, que coisa mais simples! Para começo de conversa, era no meio de uma favela, depois, qual seria o tamanho do retângulo? Estava em pé ou deitado? Será que ele deveria olhar para cima, para os lados ou para baixo? Principalmente, como poderia se encontrar numa favela? Indagações tão úteis e tão inúteis! Ele sabia que só lá é que poderia encontrar respostas. ‘Mas quem vai para lá?! Acaso tenho cara de ONG? Sei contribuir com o que quer que seja para o bem-estar de qualquer comunidade?!’
Sabes a resposta.
Vai mal preparado. Sim! Ele vai, meu amigo, ele encara a situação! Na verdade, do ponto de vista energético não está assim tão mal preparado, e não está sozinho – saiba disso ou não. Os encontros não foram em vão. Contudo vai se deparar com uma realidade que absolutamente não conhece. E, pior, não faz a mais mínima ideia do que tem que fazer lá.
Não há muito que preparar para uma viagem dessas. É entrouxar algumas roupas fuleiras (Não que todas as suas não o fossem, o que quero dizer é que preferiu escolher as mais fuleiras delas.) numa mochila fajuta, que era a única que tinha, memorizar as indicações, pois não era otário de levar o mapa, pegar um ônibus que o pudesse levar o mais próximo da subida do morro. Está em busca de um quarto para alugar. Sua treinada atenção nessa hora é de extrema valia, ele conta os pontinhos do mapa – que agora são os barracos (da favela, não aqueles bate-bocas dos vizinhos), em latitude e longitude. Quase que tateando as ladeiras íngremes e estreitas, em certa esquina depara-se com um muro de alvenaria – era das poucas coisas que se via ali feitas de tijolos e cimento –, razoavelmente rebocada e pintada no capricho em azul e vermelho: uma propaganda das Casas Bahia! Grudado a essa parede vivia um casebre com um cômodo incômodo para alugar. Não penses que havia qualquer plaquinha, alguma indicação, nada. Foi tudo descoberto na tal boca pequena, foi conversando, indagando, enquanto internamente as suas indagações se multiplicavam. Mas quem tem tempo para isso agora?
Alugou, pagando antecipado. Tinha uma cama, fogareiro e meia dúzia de pregos na parede. Poucos minutos foram suficientes para desejar sair. Ficou a mochila em cima da cama e a porta encostada (quem disse que tinha chave?). Sai carregando só o medo de se perder naquele labirinto dos infernos. Vai atento. Vira aqui, dobra ali, descendo para um boteco que reparara enquanto subia, quando se depara com a seguinte cena. Jaz uma mocinha estatelada no chão, estranhamente não há ninguém ao redor, como se toda a comunidade tivesse desaparecido num passe de mágica. Instintivamente ele vai em seu socorro, sem se perguntar o porquê de tanta ausência num lugar tão apinhado. Ela está bastante machucada, tem hematomas por todo lado, um olho está tão inchado que praticamente não abre, o canto da boca sangra e as lágrimas borraram tudo. Está desacordada. Sem pensar – (se tivesse o mínimo bom-senso não teria se envolvido naquilo) –, ergue aquele corpo frágil nos braços magros e leva para seu quarto (que deveríamos chamar de quinto...), deita-a na cama e não sabe o que fazer. Não sabe o que fazer. Não sabe o que fazer.
Depois consegue perto uma bacia d’água e um trapo razoavelmente limpo. Logo vê que necessita algo mais que isso. Sai em busca de uma farmácia, tendo o cuidado de deixar a porta encostada, e não escancarada. (Eram essas as duas únicas opções.) Da farmácia que por fim encontra, perguntando cá e lá, traz o que conhece para curar feridas. Ainda não sabe que traz dentro de si cura para as outras feridas, as que não são aparentes. Essa noite e todo o dia seguinte são dedicados aos cuidados com ela. Bom que ele sabia não dormir!
Mais uma noite passou, entre gemidos e sonolência (dela, bem entendido, pois ele estava a essa altura tão alterado que sonolência era tudo que não o acometia). E, quando finalmente ela despertou, estava apavorada. Primeiro não pôde entender onde estava, mas, tão logo se deu conta da situação, sua aflição aumentou sensivelmente! Sabia que estava pondo em risco aquele pobre franzino. Só ele não sabia de nada. Ela era propriedade do traficante-mor do morro e havia levado uma surra quando lhe dissera, toda contente, que esperava um filho dele. Depois de muita hesitação, ela contou toda a história, mostrando o risco que eles corriam. Ele nunca soube dizer se justamente esse perigo o estimulou ou se já estava envolvido com aquela criatura frágil, desprotegida e que, à medida que curava os hematomas, revelava uma beleza que o estonteava. Acho que podes imaginar o drama do pobre rapaz. Começava a se encantar por uma mocinha, quase menina, grávida do bandido que controlava aquela favela. Ele não podia estar numa situação melhor! – Melhor para que?! – podes me perguntar. Para crescer, ora, pois era crescer ou morrer!
Começam então a perceber uma movimentação ao redor, algumas conversas que logo lhes revelam que o tal chefe, arrependido, está à procura da sua protegida. E isso é um péssimo sinal. Quer dizer que toda a rede está atenta aos seus menores movimentos. Se ela já não tem lugar ali, ele menos.
E o chefe sabe tirar segredos e qualquer informação dos moradores. – É? temos novidade por aqui? um branquelo raquítico alugou aqui um quarto (quinto, nos quintos, pois no inferno está) e pagou antecipado? A coincidência dos fatos – aparecimento de um e sumiço da outra – alerta o cara, que não é bobo. ‘Vamos lá ver.’ Mas não vê mais que um idiota franzino, sentado na cama – pois não havia mais onde sentar exceto o chão –, segurando a cabeça entre suas mãos pequenas, como se estivesse totalmente ausente. (Ora, ausente! Não sabia o tal chefe valentão que ela estava escondida ali mesmo, no mais óbvio: embaixo da cama. Às vezes o simples é tão simples que dá a impressão de não merecer nem ser notado.) O lugar cheirava a hospital, o pequeno tinha uma tintura esquisita nos dedos. O chefe vai embora levando todo o seu bando. Ele permanece ali, paralisado de medo. Ela quase sem respirar.

Recompensa: O herói enfrentou a morte, se sobrepõe ao medo e tem recompensa (elixir).
Intrepidamente, ele decide leva-la dali. Veste-a com suas roupas fuleiras, boné, óculos escuros cheios de azinhavre por tão pouco uso (quem sabe por que trouxera?), põe a mochila fajuta nas costas e encara a rua. Ah, sim, se se pudesse chamar algo ali de rua! Tentam parecer naturais, um casal qualquer descendo as ladeiras. Ou seria melhor dizer subindo os cumes? Porém não posso me precipitar, por enquanto é só terror. Tentar parecer natural quando se está em pânico é viver o pânico em dobro. A fuga os estava levando ao esgotamento. Pudera, só o esforço para parecerem naturais, enquanto ela mancava e gemia, e ele suava frio...
Saem ilesos. (Só rindo, usar tal termo, quando ninguém mais pode estar ileso, quando todas as crenças estão a ser chacoalhadas até as medulas.) O fato é que ele consegue tira-la dali e leva-la para o seu apartamento. (Este é meu herói! Meu garoto!) Despe-a como se enfermeiro fosse, no chuveiro de água morna ela geme de dor e agradece, a ajuda a lavar os cabelos e as costas, consegue pijama e cueca limpos, uma sopa de pote, escova de dentes nova. Põe-na na cama com cuidado e gentileza. Só então vai cuidar de si. Está morto de fome, morto de medo e de cansaço, está turbado e perplexo. Feliz! Sim podes crer, o idiota está feliz, se sentindo inteiro, vivo! Coloca As Suítes Francesas – bem baixinho. Sim, ele também tinha! (Fico me perguntando como é que um fodido assim tem discos e livros tão bons.)
Na manhã seguinte, depois de tratar dos ferimentos e dar um bom café-da-manhã (disso ele entendia), vai à casa do velho buscar seu cachorro (o de estimação, claro, porque o interno está nele mais ativado do que nunca). Mal o velho abre a porta vem o outro balançando o rabo e se esfregando nas suas calças. Foi um encontro memorável, com o cachorro e com o mestre. Ele lhes contou tudo o que acontecera. O cachorro às vezes ficava olhando para ele, outras e outras vezes vinha cheira-lo ou pousar a cabeça nos seus pés. O velho não mostrou espanto, mas certo orgulho dele não conseguiu disfarçar... Acho que nem quis. Esse encontro foi rápido, sem chá nem música, pois ele precisava voltar para cuidar dela. Antes de sair perguntou ao velho se gostaria de conhecê-la, quando ela estivesse recuperada o suficiente. Ele lhe disse que ficaria contente e honrado em recebê-los para um jantar que prepararia especialmente para a ocasião. Nosso amigo não entendeu porra nenhuma, passou a mão na coleira do cachorro e saíram para o sol do meio-dia.
Encontraram-na deitada na cama, cochilando, com uma das mãos levemente pendida à beira do colchão, posição ideal para o cão se aproximar farejando, e foi o primeiro que fez, longamente, antes de começar a lamber. O dono nunca o tinha visto tão simpático. Ela despertou, ainda sentindo dores pelo corpo, porém com tal alívio na alma! Seria real o que estava acontecendo? Afinal como passou de estropiada, de largada na sarjeta, a cuidada e, realmente protegida, assim tão assim? Não podia crer que, ainda por cima, tivesse um cão de estimação. Sim, porque foi amor à primeira vista, a imediata aceitação recíproca e o carinho entre eles. O dono quase que queria ter ciúmes, mas ficou de fato muito contente com a ligação imediata e simples. Não muitos dias depois já saíam os três para passear calmamente pelas calçadas (aqui havia!), parando para que o cão fuçasse o que quisesse, livres do tempo e do terror. Conversavam muito, contando-se as suas vidas, anseios e medos. Ela, desde menina tão observadora, e tendo vivido experiências tão marcantes, revelava uma velha sábia. Ele lhe falava da sua infância no campo, ela também. Quando menina sua família morava num sítio que seu pai perdeu no jogo. Daí para frente foi só ladeira abaixo, morro acima, lama com esgoto, medo e perdição.
Como não havia outro jeito, dormiam os dois na mesma cama, o que lhes permitia ficar conversando até altas horas. Ainda seus corpos não haviam se descoberto. Na verdade, nenhum dos dois tinha pressa, já era muito o que estavam vivendo. Marcaram o tal jantar com o velho senhor da casa B. Ela não entendia o porquê de ele se referir assim à casa, apesar de ele ter-lhe contado do mapa e da marcante caligrafia do B. Quanto ao mapa e suas indicações, ela se sentia uma privilegiada, especial por primeira vez na vida, isso tudo antes mesmo de conhecer o tal mentor do franzino, que ela agora prefere considerar enxuto – o cara é seco, mas forte! O homem os recebe e envolve num manto de delicada leveza. Na sala, dança um leve aroma de sândalo, talvez de um incenso aceso sabe Deus onde. O fundo musical está abastecido de Noturnos (não é que o velho manja de romantismo?). Os momentos em que este se ausenta para fazer algo mais na cozinha são vividos entre o casal com relaxamento naquele sofá, com observação e olhares sorridentes. O cachorro consegue ficar com a cabeça nos pés de um e a bunda sobre os pés do outro. É difícil saber quem está mais leve. Eu apostaria no velho. O sentimento de dever cumprido pode ser como um alento divino. Isso justificava o soberbo vinho que o agricultor havia conseguido (quem sabe como?) e cuja garrafa não parecia esvaziar jamais, se é que era a mesma. O mestre preparou belos nacos de lombo de bacalhau com cebolas e batatas, banhados em azeite de oliva de ótima origem, e servidos com arroz branco. Mudaram para um sauvignon blanc e seguiram na mesma onda. Ela e o velho conversavam animadamente sobre lavouras, hortas, ervas. A ela fora transmitido os saberes da avó sobre as ervas que curam, e também sobre aquelas que alteram nosso estado de consciência; sobre as ervas que sanam antigos vícios e sobre as que trazem novas possibilidades. Ela o via como um avô querido e receptivo, coisa que nunca tivera. Ele via diante de si uma corajosa senhora, tão nova em idade, em quem a vida havia depositado tanta esperança quanto proposto desafios. Feliz casamento! (não seria muito cedo para já falar disso?) Calma! Ele falava do casamento dos dois aspectos dela mesma. Entretanto, já podemos afirmar que ela sem ele teria minguado no submundo, ele sem ela não teria motivação para entrega e cuidado, e ambos jamais brilhariam. Os dois voltaram para casa ebriosinhos, o cachorro puxando a própria coleira solta, mijando onde queria. Nessa noite dormiram abraçados. E então, acredite se quiser, ele dormiu! – leve como gaivota em corrente de ar quente sobre o mar. Quando acordou ela preparava o café-da-manhã, que já havia se tornado a refeição mais nobre. Não pôde resistir a lhe abraçar por trás, passando a mão na barriga que ainda não se avolumava. Receptiva, ela conduziu aquela mão ao seu seio entumecido. Ele não se sobressaltou – tudo parecia tão natural, os cheiros já eram tão íntimos... Seu pau por primeira vez deu sinal de vida. Ela notou, apenas tentou disfarçar o sorriso, entretanto ele percebeu a aceitação, mesmo sem ter experimentado isso jamais. O tempo parou.
Provou do mel. Aquele odor despertava todas as células do corpo e todas as fibras da alma. Chegou dentro dela como se soubesse exatamente o que estava fazendo. Mas quem estava ‘fazendo’? Por acaso alguém ali tinha algum poder de decisão? Ele só seguia a onda. Entretanto devo dizer que a onda se revelava um verdadeiro vagalhão, eles se lambiam, se tocavam e se beijavam em tantos lugares e de tantas formas, com as intensidades mais diversas, era tal o estado de presença que, paradoxalmente, pareciam não estar ali, mas em outra dimensão. Só sabiam se era noite ou dia pelos movimentos do cachorro externo, pois para o interno, aquele eterno selvagem, o tempo não mais contava. E, se pensas que era pura selvageria, por mais apreciável, era pouco para definir aquele envolvimento que integrava todos os centros, os poros e as fáscias. ‘Como posso estar amando um branquelo miúdo careta?’ ‘Como posso me apaixonar pela piranha do trafica?’ Dois bodies que não fazem selfies. Dois esquerdos que revelam direitos, promulgam as leis da existência sem fronteiras, só com fundamentos que poucos podem chegar a conhecer. Os contatos eram alimentos dos mais diversos, de forno, fogão, cama, tapete, sofá, mesa, cadeira, chuveiro e pias.
E, queiras crer ou não, eram pias. Estavam nascendo na própria pia batismal. Tudo era primeira vez.
Ele esqueceu o que era dormir mal, e numa noite (teria sido à tarde?) sonhou que um elixir brotava de uma fenda quente numa encosta. O velho se dobrou de rir quando ele lhe contou esse sonho. Disse que ele mesmo nunca tinha feito esta ligação, que estava encantado! Ele já havia desistido de compreender tão imediatamente qualquer coisa, mas se sentiu cúmplice. Gostou disso. E recordou, sorridente, aquele olhar do velho na saída da missa de domingo...
O casal decidiu convidar o velho para um jantar que eles preparariam no seu apartamento. Naquela noite, seu riso superou os decibéis dos vizinhos, Mozart superou todos os sertanejos com vantagem. Fizeram salmão assado com alho-poró. Os dois amigos beberam duas garrafas de branco seco. Ela não bebeu, já estava zonza de gratidão pela vida renascida. De madrugada, depois da despedida amorosa do velho, tendo apenas recolhido toda aquela festa à pia, se amaram como cão e cadela, se encontraram como anjos na abertura do céu, suaram e gemeram como se o mundo fosse acabar, como se os dias tivessem ido ao fim, como se estivessem morrendo a cada suspiro, e nascendo em cada gesto.

O caminho de volta: O herói deve voltar ao mundo comum.
Se, mediocremente, sonhara com férias agradáveis, teve muito mais que isso. No entanto, era hora de voltar ao trabalho. Poderias pensar que havia nele uma tremenda má vontade em relação a isso, dada a delícia que era para os dois terem todo o tempo para si! No entanto, ele estava imbuído do profundo desejo de cuidar, e esse seu emprego garantia o mínimo conforto necessário para aconchega-la. Assim, ele fazia o que tivesse que fazer, de boa vontade; espalhava aquele seu calor suave ao redor, onde estivesse. Não eram somente os seus atos, ou sua forma equilibrada de conduzir as coisas, era uma espécie de emanação, que ele fazia questão de não ter consciência. Porém as pessoas percebiam, e começavam a lhe procurar, a princípio para que ele ajudasse a solucionar coisas apenas pertinentes ao andamento do serviço como um todo. Logo procuravam por conselhos, ajuda pessoal ou por simples contato.
Combinaram, os dois (eles adoravam combinar!), que no próximo jantar/encontro convidariam também o livreiro.
O mestre perguntou se poderia ir acompanhado. Aquilo causou surpresa, mas aceitaram divertidos. Não estavam constrangidos por oferecer comida simples, mais estavam se importando com poderem estar juntos. Todos. Tinha sido preparado um músculo, entre goulash e barreado, com torradas e uma salada verde, a bebida era cerveja e cachaça, ou água. Foi um verdadeiro banquete! Dessa vez foi o casal vizinho que se incomodou com os decibéis. O véio mestre veio trazendo a formidável companhia de uma cinquentona bem peituda e gostosa, viúva de um militar (deveríamos dizer sobrevivente), que não tinha papas na língua. Falava elegantemente de coisas as mais pueris, e de forma quase pueril das coisas mais elevadas. Tudo junto, temperado com as gargalhadas mais contagiantes. O livreiro veio trazendo para a moça um vasinho de violetas violetas (não tendo visto o mapa e seu pacote.). Ela abriu um largo sorriso encantado que logo se acompanhou de lágrimas de gratidão. Ela ainda não se acostumara a ser homenageada. Mais que isso, aquele encontro já parecia ser de família. O senhor livreiro contava histórias e mais histórias as mais interessantes, conduzindo-os, como se em lombos de camelos... Eram pura alusão, pura poesia. O velho era o máximo!
A senhora não ficava atrás. Com a mesma desenvoltura, falava de filosofias orientais e da ejaculação precoce do general, antes coronel, antes major, capitão, tenente, mas sempre com ejaculação precoce ou dificuldade de ereção. O mestre ria à solta! O livreiro sorria enrubescido. Todos se deixavam levar pelo entusiasmo e pelo afeto da mulher, que, por longos momentos, segurava a mão da menina entre as suas. A pobre moça agora tinha família, amigos e, principalmente, respeito. Isso sem mencionar o amor dele, que se revelava nos mais mínimos gestos.
Na repartição aconteceu que seu chefe foi convidado a se aposentar. E nosso amigo/herói convidado pela diretoria a assumir a gerência. Em resumo: melhores condições financeiras e menos tempo para si e para se dedicar a ela. No entanto, já não era mais uma questão de tempo. Sua dedicação era tão verdadeira que todo o seu tempo, toda a sua energia, eram dedicados a ser. E isso dizia respeito a ela, a todos e a tudo. Tornou-se um líder. Será mesmo possível imaginar que um tipo como esse possa se tornar líder de alguma coisa ou causa? Pois foi assim que se deu. Verdade que um líder silencioso, como era do jeitão dele – nada de espalhafatos! Ele tinha energia, magnetizava as pessoas e seus problemas. Poderias pensar que, com isso, ele estivesse se sentindo muito contente, e te enganarias, ou ficasse sobrecarregado, e te equivocarias novamente. Tudo aquilo era tão natural, espontâneo... Ah, sim, não pude ainda mencionar que depois de toda espontaneidade perdida, ele estava em pleno fluir dela, sem notar, como é natural. Ela voltara, sem nem sequer ser almejada, como subproduto do seu estado de presença. Nem sei se posso dizer ‘voltara’ quando, em realidade, ela se revelava como nunca antes. Aquilo a que nós costumamos chamar de espontaneidade já havia ficado para trás, como já sendo pouco, diante daquilo tudo que ele experienciava.
Nada aparentava tanta diferença assim, continuava sendo ele o franzino encucado de sempre. Contudo, parecia que em algo não era o mesmo, não era a mesma vibração (ou aquela antiga falta de). Parecia vibrar com ele algo muito essencial, poderíamos chamar elemental – de elemento –, que fazia os planetas girarem a favor, os astros em pró, circunstâncias favoráveis... Pode que a gravidez dela seja parte de um grande momento criativo, de um salto. Era como se a criança também fosse dele. E era! Vai explicar! Enfim, simples fato é que o sentimento de cumplicidade e encontro que eles viviam ultrapassava genéticas outras. Estas se mostravam irrisórias diante da essencial. Mesmo que logo pudessem mostrar sua crueza...
Não quero que penses que estamos diante de um bravo. Pode até que ele seja, porém não é a esse aspecto que me estou atendo agora, e sim a algo mais cru, mais bonito, simples e claro. Eles simplesmente haviam se encontrado nos desencontros da vida, nas encruzilhadas e nos becos escuros, se reconheceram, eram ambos fodidos. Não sei se já vi pessoas mais dignas! Assim se cria uma urdidura, tecedura e, logo, os arabescos sobre fundos harmônicos, os cravos bem temperados, estranhas rosas brancas... a partir das quais as melodias mais incríveis eram vividas silenciosamente, ou nos sussurros que trocavam... Era impressionante o encaixe. Não sei se digo no singular (que era!) ou no plural de todos os níveis envolvidos. Apesar da barriga que se avolumava, depois de ela ter se limpado do abuso a que fora submetida, sua própria volúpia particular se revelava: terráquea e olímpica. Ela nas nuvens, ele no sétimo céu! O mundo talvez pudesse receber esse jorro, que poderia fazer com que tudo nele fosse mais quente e amoroso. Quem sabe dessa vez?
Viver a dois (a três, se considerarmos o cachorro, quatro será com o bebê, e já é!) não era nada complicado, eles se entendiam muito facilmente, sem que precisassem falar (mesmo porque o cão não era capaz, nem o outro). E todos se entendiam bem porque sim. Quanto mais ela se recuperava, mais se mostrava hábil em organizar todas as coisas do ninho. Se antes aquilo era um semi-lar, agora era todo. E uma criança estava a caminho. Como seria ser com tudo isso? Não tinham ideia. Mas estavam a fim.
Até ir à feira era uma degustação de vida. Sem-vergonha, em casa o cão dera para gostar de ficar deitado de barriga para cima, descaradamente se colocando disponível para qualquer afago. O outro, cachorro, pedia boquetes como quem vai à fonte Zamzam. E ela, apalpadelas, interesse e quentes lambidas. Para que filé mignon? Tinham muito mais que isso, sua vida era um luxo a que poucos tinham acesso.
Não era somente uma questão de fodas e de sabores. Às vezes eles podiam ficar simplesmente se olhando, como que se reconhecendo, sendo este reconhecimento um do outro ou de si mesmos. Eu diria os dois a um só tempo, igualmente gratificantes. E não era só isso que os movia, eles pareciam acessar o mitológico encontro de par. Ele reconhecia nela a tolerância arquetípica do feminino, ela via nele a firmeza digna do masculino. Ah, e pensar que tão rápido tudo isso seria posto à prova! Que dó!
Quase previsível que, com calor se esparramando ao seu redor, logo aparecesse uma colega carente, necessitando ir um pouco além, no calor que ele oferecia. O coitado bem podia ter aproveitado para validar um pouco melhor seu ego franzino. Felizmente não confundiu as coisas, e se manteve fiel. Não por valores morais ou coisa do gênero, mas apenas por estar num princípio (queiras tu ver isto como tempo ou como valor, dá no mesmo.), ele não estava dormindo, mesmo que agora dormisse como nunca antes, tão profunda e docemente. Talvez até por isso.
Soube ser gentil no limite que impôs à sua colega. Logo ele, que era tão avesso a imposições. Ela, felizmente, não se ofendeu. Ao contrário, ao reconhecer a integridade no nosso amigo, pôde se sentir mais confiante nas pessoas, na vida, na possibilidade de encontros verdadeiros, e isso só fez alimentar seu espírito. Ele contou o episódio para sua amada. Ela mal podia crer que tal coisa existisse (não a atitude da colega, claro, comum, mas a dele), mesmo que ele não tenha reservado nenhuma pompa ou pudor ao fato e ao relato, ela ficou embevecida. O franzino parecia um gigante. Ele não entendeu tanta admiração. Ah, como ele desejava que ela fosse tão simplesmente feliz! Pobres anjos, ele vindo de tanta mediocridade, ela vindo de tanta brutalidade. A vida é mágica em sarar feridas que todos poderiam pensar incuráveis. Quem diria que esses dois se encontrariam? Mais ainda, quem diria que seriam capazes de se reconhecer e de apostar nesse encontro? Oh, eles eram tão despreparados! Talvez tudo isso seja obra da necessidade. Talvez passassem em branco se não fossem tão miseráveis. Mas quem vai falar de miséria em plena abundância? Só mesmo suas consciências absolutamente ativas a se dar conta do absurdo e límpido daquilo a que estavam submetidos. Sim, estavam – aquilo não havia sido sua escolha consciente (nem era possível!), e sequer se apresentava como algo certo. A vida havia tramado esse encontro. Quase parecia mais uma brincadeira dela. Mas, para eles, a brincadeira era maior. Ia do mais simples tato e ao cheiro até à maior admiração, respeito e carinho.
Over the rainbow, ele lia poesia para ela, mostrou a Paixão Segundo São Mateus, lhe falou de Wilde e de wilderness – disso ela sabia –, contou-lhe contos sufis e zen, que ela, ainda sem saber, vivia. Nem água nem lua. Foi às galerias e museus com ela para ver quadros e esculturas, tudo entrosava. Existe erudição? Ou tudo é representação da alma humana? Ah, não havia limites para tal encontro! Entretanto logo veríamos barreira...

Ressurreição do herói: Outro teste, no qual o herói enfrenta a morte, e deve usar tudo o que aprendeu.
Belo fim de tarde, volta nosso amigo para casa, depois de um dia cheio das atividades mais diversas nos escritórios. Plural sim, amigo, ele já se envolvia no financeiro e no administrativo, claro. Evidentemente que também no de recursos humanos (de pessoal, como ele preferia pensar, mas guardava para si). Enfim, voltava para casa com uma bisnaga quentinha, comprada na panificadora do bairro, quando de longe viu o seu cachorro parado, embora não sentado, ao lado do portãozinho de ferro na frente do prédio. Ele vê que o cachorro o vê, mas estranhamente não vem até ele, permanece ali até que ele chegue. Não balança o rabo. Só se encosta a ele, se esfrega um pouco, e logo se vira como para entrarem no predinho, o rabo baixo.
Nosso amigo então percebe que o portão principal está aberto – coisa muitíssimo incomum. O cachorro não vai à frente nem atrás, também não parece estar ao lado... Do corredor já se vê que a porta do seu apartamento está escancarada. Ele entra cauteloso, o cachorro invisível. Na sala, nada parece fora do lugar. Só na cozinha alguma porta de armário aberta. No quarto, o primeiro que ele vê é ela, encolhida sobre a cama, envolta numa manta, com olhos abertos de súplica, mas sem aparentes marcas de violência. Contudo, está visivelmente apavorada. Em seguida, ele se depara com um sujeito, sentado na sua cadeirinha antiga, posta ao lado da cômoda, sobre a qual estava um prato que ele conhecia, com umas carreirinhas de pó branco que não conhecia, mas podia supor o que era. Ao lado, uma arma de fogo e uma caneta Bic sem carga. Pronto, tudo que eles mais temiam – tanto que não gostavam de conversar sobre isso, para não botar pilha – aconteceu. ‘O traficante nos descobriu!’
A bisnaga já havia ficado sobre a mesa da sala. Entrou de mãos abanando (talvez para secar algum suor...), ficou de pé, apoiado na outra ponta da cômoda. Podia ver que ela estava muito, muito aflita, e não se mexia. O cara tinha aquele aspecto amarelo-claro de suor frio, de anfetamina – uma cara de cera. E é obvio que quis tomar a dianteira.
– Vim pegar de volta o que é meu! Eu não faço as coisas como tu, que rouba escondido, e foge. Faço na tua cara!
Nosso herói não demonstra o medo quando responde.
– Pensei que não querias mais a ela nem, muito menos, à criança que ela traz no ventre. (Ele disse isso, mas logo se arrependeu. A maré ali não estava para peixe, não tinha conversa.) Houve um silêncio tenso, o cara aproxima a mão da arma, mas logo pega a caneta Bic, e dá mais uma cheirada. Nosso amigo pressente que aquilo não era bom sinal. Mas, antes mesmo que o trafica pudesse responder, ele solta mais esta:
– Escuta, o que é exatamente que estás querendo aqui? Vieste busca-la para cuidar dela e do bebê que já está para nascer? Acaso o que queres é o reconhecimento de paternidade? Podes oferecer à nossa filha mais que isso que podes ver aqui? – E abriu uma gaveta da cômoda que guardava parte do enxoval do bebê. (Ele não devia ter feito isso...) O sujeito ficou puto.
– O quê? Nosso filho?! Tá maluco, miúdo? Que porra é essa? Tá pensando o quê? – Ignorando o gênero, já pega a arma e vai enfiando na boca do nosso amigo. Este, a essa altura, entre o medo atroz e a premência da necessidade, treme. Contudo não perde de vista o que lhe importa verdadeiramente: a segurança dela (e do bebê). Afasta cautelosamente a arma com o indicador (como num filme, em câmera lenta), para poder falar – como se dialogar fosse adiantar alguma coisa! Mesmo assim, o nosso herói silencioso não pode se calar.
– Desculpa, não quis ofender tua paternidade. Não tenho grande coisa que oferecer, sei disso, mesmo assim estou convencido de que posso dar melhores condições tanto a ela quanto a... seu filho, mais segurança e alternativas do que poderiam ter contigo. (Imediatamente se arrepende de novo, porém já tinha dito.) – O cano da arma volta para dentro da sua boca. O bandido bufa! São obrigados a se olhar, um em ameaça, outro querendo salvar o essencial. E este tem a ousadia de querer falar mais uma vez, e novamente (só que agora olho no olho!) precisa tirar o cano da boca para poder falar. O filme vai ficando pior.
– De verdade, amigo, vou te dizer: Se podes dar às duas (agora, deliberadamente ignorando o gênero que o outro quis impor) algo mais do que eu posso, por favor, me dá um tiro agora mesmo e as leve para cuidar, pois eu não preciso mais viver, se elas se forem, terei fracassado no que de maior valor minha vida pode ter agora.
Olha só que coisa absurda. Está tudo errado! O discurso não combina com o ouvinte, se é que ouve ou houve um; a importância da vida do nosso herói não pode estar resumida ao cuidado com... Será que não mesmo? Será a dedicação total e irrestrita pouco, para uma vida plena? Pô, desculpa o meu delírio. Volto à narrativa.
Houve primeiro um urro, em seguida um tremor bufante que mostrava certo conflito interno. Ah, mas vá contar com a capacidade do fulano para resolver conflitos! Ele começa a se embaralhar, se confundir... Afinal, o que era mesmo que ele queria? Mas, porra, ele tinha que dominar a situação! Não haveria de ser aquele banana branquelo que ia tomar o que era seu. Era? Ou é? Será? ‘Que porra de enredo é esse aqui que não tomo simplesmente o que é meu, e esse babaca que se foda?! Vou cheirar outra.’
A tensão é extrema. Talvez por isso, nosso amigo esteja se despedindo internamente da amada, da nossa filha e do nosso cão, da própria vida. E (quer saber?) viu que tudo estava certo e bom. Havia vivido! Ela parece ver o que ele está vivenciando, e seus olhos se cristalizam nos dele. O olhar dele derrama paz e aceitação. Ela entende. E o olhar que lhe devolve leva o quase sorriso que seus lábios não podem revelar.
Opera-se o milagre. Ah, milagres são tão simples! O cara, por primeira vez, pensa no que seria o seu filho, entre as fraldas de cocô e mijo, entre as balas e rojões do mundo em que vivia. Era isto o que tinha para oferecer. O pobre moço fica desenxabido... Poderíamos dizer, se fôssemos literatos, que ele se curva diante das evidências, se tudo pudesse ser simples assim, ou ‘assim de simples’, como gosto de dizer. Entretanto, o fulano ainda vai estrebuchar um bocado, vai ameaçar, vai impor o terror, vai tentar se valer da brutalidade e da violência, que são seus meios. Custa muito perder... mesmo que não tenha plena noção do que seja que está perdendo. Não importa, ‘é meu, era meu, eram meus! Que merda! Vou eu perder para este raquítico filho da puta? Afinal que porra é esta que está acontecendo aqui?!’
O cachorro aparece out of the blue e dá um afago nas suas canelas (as do trafica, acredite se quiser). Nossa heroína, gelada, não se mexe. Ele, nosso amigo querido, mal se mantem de pé, ancorado está na cômoda, olhando as roupinhas, os sapatinhos, as mantinhas que aparecem na gaveta aberta, como fotografia de céu claro com nuvens rosadas. Esta cena parece se congelar, o tempo não dá mostras de se mover. Na verdade, afora o cão (incauto!), sequer uma única mosca se aventurava a se mover. Às vezes a eternidade é vivida em momentos insuspeitos. A gente pode crer que está vivendo o mais alto, estando baixo, como achar que está na fossa quando está a céu aberto, límpido azul, e rosa...
Sem dizer palavra, o rapaz se levanta da cadeirinha antiga enquanto põe a arma em algum cinto ou simples bolso. Ele olha, ao mesmo tempo desafiador e inocente, para os dois (não se digna a olhar para o cachorro nem para a barriga), esquece a última carreira no prato, sai por onde entrou. Assim de simples!
Um silêncio total. Qualquer movimento poderia quebrar cristais e vidraças, se ainda existissem. Mas não, estas se foram com os vitrais do tempo da gentileza. Ora se havia espaço ainda para coisas tão delicadas! Será que não? Não será que sempre e sempre o sutil subverteu a brutalidade, embasbacou-a, lhe puxou o tapete elegantemente? Se não sempre, será que pelo menos eventualmente? Por favor... (Vou ter que pedir desculpas, outra vez, já me sentindo envergonhado por meus delírios, sem nem mais poder usar a palavra novamente, querendo insinuar a possibilidade de uma nova mente, porque até isso já fiz aqui.) Vamos ter que seguir com a velha mente mesmo. Ou será que não? Será mesmo que ela ainda pode existir? É claro que sim! E bom que seja assim! Uma mentalidade não necessita ser contra qualquer outra. Ela, no melhor, a inclui e supera, e assim se transforma.
Ainda estamos no tempo congelado na história dos nossos heróis, os dois agora petrificados como nuvens... Dá para entender?
Talvez até possa não ser tão difícil assim entender, se consideramos a natural reação pós-terror, pesada como pedra de paralização, e, também naturalmente presente, a leveza mais sem forma, fundida, difundida, que reinava naquele simples quarto.

Regresso com o elixir: O herói volta para casa com o ‘elixir’, e o usa para ajudar todos no mundo comum.
No dia que a menina nasceu, num cômodo mágico que ninguém conhecia, na casa do mestre, mas que se tornou epicentro da emanação da casa, dotado de uma atmosfera mais para élfica que humana... além da parteira, estavam todos em círculo. Nossa velhota foi de doula a mais do que uma mãe. Alegre se doava em cuidados devotados a todos, à limpeza, à comida quentinha... O mestre passava o seu tasbi com um plácido sorriso, enquanto lidava com as coisas da casa e as necessidades dos amigos. O livreiro – tão imperceptivelmente quanto fazia a senhora em tudo, menos nas gargalhadas e tiradas espirituosas, é claro – ia lavando umas panelas e louças aqui, levando o lixo para fora ali, parecendo não pisar no chão. Aliás, bom que se diga, estavam todos enlevados pela chegada. Havia ali uma vibração absolutamente perceptível, quase palpável, como onda do mar da vida, que abençoa com a revelação do amor essencial. Era impossível ficar imune. Ah, que bênção! Como pode a vida nos arrebatar assim tão simplesmente! Pode nos arrancar do embotamento num piscar de olhos! (E não faltavam olhos a piscar.)
O mestre não perdia uma oportunidade de estar com ele. Nosso amigo se sentia muito honrado, ainda que o velho se portasse mais como parceiro e cúmplice do que como mentor. Tudo levava a crer que o que importava ali era o simples contato, a presença. Era ver como, ao mesmo tempo, eles fortaleciam a si, no melhor de cada um, e alimentavam uma intenção em comum. Quando digo comum estou me referindo não somente aos dois, mas a todos. Num grupo tão heterogêneo, e aparentemente acidental, a gente poderia supor que houvesse grande diferença entre graus de consciência sobre o que de fato estava acontecendo ali, que coisa era aquela que eles estavam vivendo. Entretanto, não havia. Aquela boa trupe, com toda a diversidade de histórias de vida, se aproximava, quase se fundia (quase?) num mesmo grau de percepção da onda que se fazia presente – a que a miudinha trouxe que Deus deu, ou que eles construíram juntos, ou como lá que se possam chamar os momentos eternos em que a realidade física consoa harmoniosamente com a realidade outra.
Estranho no cômodo não era o perfume e o ar, estranho era ter todos os apetrechos e utensílios necessários para a espera das contrações e o parto, nos mínimos detalhes de segurança e aconchego para a mamãe e a filhotinha. Do cômodo se espalhava pela casa e, quem sabe, muito além do jardim, um cheiro tal – de húmus e de pedra molhada pela chuva, de brotos aspergidos pelo orvalho, de folhas secas voltando para onde vieram, a tornar-se terra que alimenta seiva que se fortalece em raízes e que se manifesta em galhos que alimentam brotos folhas flores e frutos – ... a sensação era de estarem num bosque com duendes. Haviam as mais diversas criaturas presentes ali, formas de vida que, como alguns de nós, perambulam pelo campo entre o visível e o invisível. Sei dizer que naquele bosque se curam tantas feridas e tantos males!
Não houve charutos, mas sim um baseado. Foi bom para todos. Nem a nossa bebê no berço nem o cão maroto, deitado ao lado deste, levados de carona, deixaram de se deliciar com o papo animado e a música. Ah, caro amigo, pensas que eles ouviam música baixinho e conversavam aos sussurros? haha! Como pensas que eles gargalhavam? Acreditas que havia algum controle bacteriológico? Não! A nossa linda menininha, quando não estava dormindo sossegada, muitas vezes ali mesmo na sala – a do som, da conversa, do sofá aconchegante e acolhedor, das cadeiras em veludo berinjela, onde o encontro não parava de ser, e o tempo parecia não fazer questão de ser –, passava de colo em colo, de aconchego em calor de peles e pelos, de bafo em esfregas e em cheirinhos mil. Olha como a vida promove seus encaixes e seus reforços!
O livreiro, em sua singela elegância, lhes regalara com A Pastoral. Era a trilha sonora do evento. Eles ouviam uma vez atrás da outra, direto! Nossa miúda cresceria com a grandeza em sua constituição... impregnada de bosques e seus segredos, de jardins, lagos, campos, montanhas e as diversas cascatas de amor. Os dias se fundiram com as noites, cuidar não tem hora, assim todos se revezavam, multiplicavam, somavam ao amor dos dois, três, quantos fossem e somos outro escancarado e incondicional tanto. Os endereços agora eram todos um, já tanto fazia em qual estavam. Todos alimentavam a todos, tudo era alimento, o ar era o maior deles, a percepção do sutil era o melhor dos cultivos. Eram concomitantes a semeadura, as regas e carpires, crescimento, colheita... E um só compartilhar. O tempo parou por um longo tempo.
Sim, parou por um bom tempo. Acredito que certamente por um bom motivo.
Quando volta ao trabalho, ele leva consigo uma onda tão sutil que se propaga sem ser notada, nota fácil o caminho de suprir necessidades, estabelecer empatia naturalmente, cultivar... Não que sua presença fosse só leve, era densa também, às vezes parecia ter a idade do mundo, às vezes seu sorriso era o de um bebê. Mas estando ele velho ou recém-nascido, o que transparecia era cristal de rocha, luz sólida, clareza de princípios e propósitos. Tudo isso com aquela personalidade fuinha que todos já sabemos, aquele jeito meio sem nada (enquanto traz de um tudo!). Não é necessário dizer que reassumiu com gosto todas as suas atribuições, e mais algumas. Creio que já ninguém há de imaginar que isso representasse algo angustiante ou estressante para ele. Para nada! Ao mesmo tempo em que mantinha controlado e ativo o seu entusiasmo, com um interesse genuíno colocado ali, voltava para casa e estava num jardim. Sim, claro, era de flores e fraldas, de contas a pagar e mimos, de grana curta... Vamos passear no parque e visitar as magnólias em flor?
Bom, já começa que logo ele conseguiu ajeitar as coisas de tal forma que o trabalho não o impedisse de almoçar em casa, todos os dias. Quem olhasse de fora veria uma cena prosaica que se repetia. Ele ia e vinha do trabalho sempre nas mesmas horas. Poderia até ser notado, por alguém um pouco mais observador, que ela sempre o recebia com o mesmo sorriso e o mesmo beijo. E isso poderia muito bem confirmar a tese do comum. Mas ah, era um refresco, era voltar a sentir o aroma, o cheiro, a vida real escrita em minúsculas e vivida em maiúsculas... Nunca era o mesmo sorriso, menos ainda era o mesmo beijo. Nenhum vizinho poderia supor o mágico que era a vida para eles. O significado! Cada um deles, um por um desses encontros, era para recordar, ao mesmo tempo, a gratidão pela dádiva que receberam e o caminho que tiveram que percorrer para chegar até ela, tudo aquilo que cada um viveu e, naturalmente, enxergar o valor de cada um. Eles haviam se encontrado como dois fodidos, agora viviam pura e simplesmente a mais alta nobreza. Dois esquerdos que revelam direitos, que promulgam as leis da existência sem fronteiras, só com os fundamentos, que poucos podem chegar a conhecer. Não disse isso já?
Há, no chegar de uma criança, uma associação do enlevo mais sublime com o mais extremo evento carnal, com o grande fato corporal da natureza, maior até do que a morte, já que justo assim a supera. O nascimento traz à consciência o milagre da vida e a sombra da morte. É bem nesse meio, bem nesse seio, que nasce o cuidado, o desejo de bem, o amor. É desse evento de vida ou morte (dupla, se falamos do parto físico, tripla se formos considerar a presença do nosso revelado herói) que os vapores, os ares e aromas, os líquidos e humores vão mesclando, tecendo, tratando de criar toda uma nova forma possível. Do ar ao líquido ao sólido.
Eles reconheciam o caminho! Haviam percorrido; todo ao contrário, sim, é verdade... Foi quando se encontraram por primeira vez, na favela, no sufoco. Do sólido (da matéria mais bruta), ao líquido (da fuga e da fluidez), ao perfume do ar da nova vida. E assim chegaram ao bosque tão sólido quanto líquido quanto gasoso. Ah, e quanto gás! Quanta oxigenação há na inspiração silenciosa – ao mesmo tempo tão exuberante e tão calma! Quanto líquido bom, do quentinho ao geladinho, do doce ao salgadinho, de vida fluindo porque ninguém se lhe opõe! Quanta solidez se forma no reconhecimento humilde do desenho da vida, e no reconhecimento de si mesmo com legítimo orgulho! Bom amigo, espero que não estejas pensando que ele estivesse se achando o máximo. Nem pensar! A essa altura, já não dá mais para acreditar que ele estivesse movido por seu ego. Não! O ego apenas dava conta de se manter no nível útil e necessário. O orgulho de que falo é o puro e simples reconhecimento, exaltação não de si mesmo, mas do todo em si, de si no todo. Sei lá como dizer.
Nossa heroína se revelava uma ninfa e um vulcão, uma apsara de fogo, uma preta velha da terra, uma mãe. Não faltava criatividade no toque, nas mãos, boca molhada de gosto, seios entumecidos, fêmea fogosa e doce donzela, matrona de tão poucos anos, hálito de eternidade, cheiro de boceta e ar altivo... Uma mulher. A vida não poderia eleger alguém melhor para fertilizar o campo por onde circulariam semeando significado, até o momento do próximo desafio, da descoberta de outros significados.
Sim, amigo, aquilo que parece ser a última etapa de uma jornada pode ser a primeira de outra. E outra mais virá depois, outra depois ainda... Entretanto, tudo virá depois. Agora, ainda temos um tempinho para nos deleitarmos com o idílio a dois, três, a muitos de nós. É só imaginar a verdade.
Reflexos em fundo verde
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